Entre o Amor e a Culpa: O Preço de Mais um Filho
— Não posso acreditar, Mariana! Como é que chegámos a este ponto? — gritou o Rui, batendo com força a porta da cozinha. O som ecoou pela casa, misturando-se com o choro do pequeno Tomás, que acordara assustado no berço.
Senti o coração apertar. Não era a primeira vez que discutíamos por causa do dinheiro, mas desta vez as palavras dele cortaram mais fundo. Eu estava de costas para ele, a tentar acalmar o bebé, mas as lágrimas já me escorriam pelo rosto.
— Rui, por favor… — tentei dizer, mas ele interrompeu-me.
— Foste tu que insististe em largar o trabalho! Agora olha para isto: contas por pagar, supermercado a meio gás, e ainda mais uma boca para alimentar! — Ele atirou as faturas para cima da mesa. — Achas isto normal?
Engoli em seco. A verdade é que não fui eu quem insistiu em ter o terceiro filho. Fui eu quem hesitou, quem ponderou cada euro antes de aceitar. Mas Rui queria tanto. Dizia que uma família grande era uma bênção, que os irmãos nunca se sentiriam sozinhos. Lembro-me do sorriso dele quando me convenceu, das promessas de que tudo ia correr bem.
Agora, sentia-me traída por essas mesmas promessas.
O Tomás continuava a chorar. Peguei nele ao colo e sentei-me no sofá da sala, tentando acalmá-lo com uma canção de embalar. O Rui ficou parado à porta, a respiração pesada.
— Mariana… — murmurou ele, já mais baixo. — Eu só não sei o que fazer. Sinto-me sufocado.
Olhei para ele. O homem com quem casei parecia um estranho: olheiras fundas, cabelo desgrenhado, mãos trémulas. A crise económica tinha-nos apanhado desprevenidos. O meu trabalho como professora auxiliar foi dos primeiros a desaparecer quando a escola cortou nos contratos temporários. O Rui, técnico de informática numa pequena empresa em Setúbal, viu o salário ser reduzido para metade durante a pandemia e nunca mais recuperou.
A nossa casa — um T3 modesto nos arredores de Almada — parecia cada vez mais pequena para cinco pessoas. Os gémeos, Leonor e Gabriel, já tinham sete anos e começavam a perceber que algo não estava bem.
— Mãe, porque é que não vamos mais ao parque? — perguntou Leonor há dias.
— Porque agora temos de poupar para coisas importantes — respondi-lhe, tentando sorrir.
Mas ela percebeu. As crianças percebem sempre.
Nessa noite, depois de adormecer os miúdos, sentei-me à mesa da cozinha com o Rui. O silêncio era pesado.
— Rui… precisamos de conversar — disse eu.
Ele olhou para mim com olhos cansados.
— Eu sei que isto não está fácil. Mas não podes culpar-me por tudo. Foste tu quem quis ter outro filho…
Ele suspirou.
— Eu sei… mas não pensei que fosse ser assim tão difícil. Sinto-me um falhado. Não consigo dar-vos aquilo que merecem.
Apertei-lhe a mão.
— Estamos juntos nisto. Mas precisamos de encontrar soluções, não culpados.
Ficámos ali sentados durante horas, a fazer contas à vida: cortar ainda mais nas despesas? Pedir ajuda aos meus pais? Procurar trabalho à noite? Cada hipótese parecia mais impossível do que a anterior.
No dia seguinte acordei com uma sensação de peso no peito. O Rui saiu cedo para o trabalho sem se despedir. Fiquei sozinha com os miúdos e com os meus pensamentos.
A rotina tornou-se sufocante: preparar pequenos-almoços baratos, inventar brincadeiras dentro de casa para não gastar dinheiro na rua, responder às perguntas inocentes dos gémeos sobre porque é que já não havia iogurtes de morango ou bolachas Maria na despensa.
Uma tarde, enquanto dobrava roupa no quarto dos miúdos, ouvi uma conversa entre eles:
— Achas que a mãe está triste por causa do Tomás? — perguntou Gabriel à irmã.
— Não sei… mas ouvi o pai dizer que agora é tudo mais difícil — respondeu Leonor baixinho.
Senti um nó na garganta. Não queria que eles crescessem com este peso nos ombros.
À noite, depois de todos dormirem, liguei à minha mãe.
— Mãe… preciso de falar contigo — disse eu, tentando conter as lágrimas.
Ela ouviu-me em silêncio enquanto desabafava tudo: as discussões com o Rui, as dificuldades financeiras, o medo de não conseguir dar aos meus filhos aquilo que mereciam.
— Mariana… sabes que podes sempre contar connosco — disse ela com voz terna. — Mas tens de conversar com o Rui sem acusações. Vocês precisam de se unir agora mais do que nunca.
Desliguei sentindo-me um pouco mais leve, mas também cheia de dúvidas.
Na manhã seguinte tomei uma decisão: ia procurar trabalho novamente, mesmo que fosse só umas horas por semana. Falei com a dona Rosa do café da esquina e consegui um part-time a servir mesas ao fim da tarde.
Quando contei ao Rui à noite, ele ficou em silêncio durante uns segundos longos demais.
— Achas mesmo boa ideia? Vais deixar os miúdos sozinhos?
— Não vão ficar sozinhos. A minha mãe pode vir cá nessas horas. Precisamos disto, Rui. Não aguento mais esta tensão entre nós.
Ele assentiu devagar e abraçou-me pela primeira vez em semanas.
Os dias seguintes foram exaustivos: cuidar dos três filhos durante o dia e correr para o café ao final da tarde. As pernas doíam-me e sentia falta dos momentos com os miúdos, mas pelo menos as contas começaram a ser pagas a tempo e horas.
O Rui começou também a fazer alguns trabalhos extra em casa: arranjar computadores para vizinhos e amigos em troca de uns trocos. Aos poucos fomos recuperando algum equilíbrio financeiro… mas as feridas emocionais demoraram muito mais tempo a sarar.
Certa noite, depois de um turno particularmente difícil no café, cheguei a casa e encontrei o Rui sentado no escuro da sala.
— Desculpa — disse ele baixinho quando me viu entrar. — Desculpa ter-te culpado por tudo isto. Eu estava assustado… e fui injusto contigo.
Sentei-me ao lado dele e ficámos ali abraçados em silêncio. Pela primeira vez em muito tempo senti esperança.
Mas ainda hoje me pergunto: quantas famílias como a nossa vivem presas entre sonhos adiados e culpas partilhadas? Será que algum dia conseguimos perdoar-nos verdadeiramente pelas escolhas feitas em tempos difíceis?