Entre o Amor de Mãe e o Peso das Escolhas: Uma História de Sofia e Clara

— Não podes obrigar-me a gostar dele! — gritou Clara, os olhos marejados de lágrimas, enquanto atirava a mochila para o chão da sala. O som ecoou pela casa, cortando o silêncio pesado que se instalara desde que Miguel começou a vir cá a casa.

Fiquei ali, parada, com as mãos trémulas agarradas à chávena de chá já frio. O cheiro a hortelã misturava-se com o perfume forte de Miguel, ainda pairando no ar desde que ele saíra para comprar pão. O meu coração batia descompassado. Sabia que este momento ia chegar, mas nunca pensei que doesse tanto.

— Clara, filha… — tentei aproximar-me, mas ela recuou como se eu fosse uma estranha. — O Miguel não está aqui para te substituir ninguém. Ele só quer fazer parte das nossas vidas.

Ela bufou, cruzando os braços. — Não preciso de ninguém! Já somos duas há tanto tempo… Porque é que agora tem de mudar tudo?

Sentei-me no sofá, sentindo o peso dos anos em cima dos ombros. Desde que o pai da Clara nos deixou — ou melhor, desde que desapareceu sem deixar rasto — que éramos só nós as duas. Eu e ela contra o mundo. E agora, aos 38 anos, depois de tantos anos sozinha, tinha finalmente encontrado alguém que me fazia sentir viva outra vez. Mas a felicidade vinha sempre acompanhada de culpa.

Naquela noite, Clara fechou-se no quarto. Oiço-lhe os soluços abafados através da porta. Sento-me no corredor, encostada à parede fria, e deixo as lágrimas correrem em silêncio. Pergunto-me se estou a ser egoísta. Se devia abdicar do meu amor por Miguel para proteger a minha filha.

No dia seguinte, ao pequeno-almoço, Miguel tenta quebrar o gelo.

— Bom dia, Clara! Dormiste bem?

Ela não responde. Mexe no leite com chocolate até dissolver todo o pó, sem nunca levantar os olhos.

— Clara… — começo eu, mas ela levanta-se abruptamente.

— Vou para a escola. — E sai porta fora antes que alguém possa dizer mais alguma coisa.

Miguel olha para mim com um sorriso triste.

— Vai levar tempo… — diz ele, pousando a mão na minha. — Não desistas dela.

Mas como não desistir quando sinto que estou a perder as duas coisas mais importantes da minha vida?

Os dias passam e a tensão cresce. Clara começa a chegar mais tarde a casa. As notas descem. Recebo um telefonema da professora Ana Paula:

— Sofia, a Clara anda muito distraída nas aulas. Está tudo bem em casa?

Minto. Digo que sim, que é só uma fase. Mas por dentro sinto-me a desmoronar.

Numa sexta-feira à noite, decido enfrentar tudo de uma vez. Preparo o jantar favorito da Clara — bacalhau à Brás — e sento-me com ela à mesa.

— Filha, precisamos de conversar.

Ela revira os olhos.

— Outra vez?

— Só quero que me digas o que sentes. Sem gritos. Sem fugas.

Ela hesita. Depois explode:

— Odeio isto tudo! Odeio ver-te feliz com outra pessoa! Odeio sentir que já não sou suficiente!

As palavras dela são facas no meu peito.

— Clara… tu és tudo para mim. Mas também sou mulher. Também preciso de ser feliz.

Ela chora baixinho.

— E eu? Quem é que pensa em mim?

Abraço-a com força. Ficamos assim muito tempo, até as lágrimas secarem.

No sábado seguinte, Miguel convida-nos para um passeio à beira-mar em Cascais. Clara vai contrariada. Caminhamos em silêncio pela areia molhada até ela tropeçar numa pedra e quase cair. Miguel segura-a pelo braço.

— Estás bem?

Ela olha-o nos olhos pela primeira vez em semanas.

— Estou… obrigada.

É um pequeno gesto, mas sinto esperança pela primeira vez.

À noite, Clara entra no meu quarto sem bater.

— Mãe… posso dormir contigo hoje?

Abro espaço na cama e ela aninha-se junto a mim como quando era pequena.

— Tenho medo que vás embora — sussurra ela na escuridão.

Aperto-a contra mim.

— Nunca vou deixar de ser tua mãe, Clara. Nunca vou deixar de te amar.

Os meses passam e as coisas melhoram devagarinho. Miguel conquista-a aos poucos: leva-a ao cinema, ajuda-a com os trabalhos de matemática (que eu nunca percebi), ouve-lhe as histórias sobre amigas e paixões adolescentes.

Mas nem tudo são rosas. Um dia descubro mensagens no telemóvel da Clara para o pai desaparecido: “Porque é que foste embora? A mãe diz que não sabe onde estás mas eu sei que é mentira.”

O mundo desaba outra vez. Sento-me na cama dela à espera que chegue da escola.

— Porque mexeste no meu telemóvel?! — grita ela ao ver-me com o aparelho na mão.

— Porque sou tua mãe! Porque estou preocupada! Porque não aguento ver-te sofrer!

Ela atira-se para cima da cama e tapa a cabeça com a almofada.

— Ele nunca vai responder… — murmura entre soluços.

Abraço-a em silêncio. Sinto-me impotente perante a dor dela e perante os meus próprios fantasmas do passado.

Naquela noite, Miguel chega tarde do trabalho e encontra-nos assim: duas almas partidas à procura uma da outra no escuro do quarto.

Ele senta-se ao nosso lado e diz:

— Sofia… eu amo-te. Mas não quero ser mais uma ferida na vida da Clara. Se for preciso afasto-me.

Oiço estas palavras como se fossem uma sentença. Fico dividida entre o amor por ele e o instinto de proteger a minha filha acima de tudo.

Passam-se dias em silêncio tenso até que Clara me surpreende:

— Mãe… se gostas mesmo dele, não deixes fugir o Miguel por minha causa. Eu vou tentar aceitar… só preciso de tempo.

Choro de alívio e orgulho pela maturidade dela. Abraçamo-nos as três — eu, Clara e Miguel — pela primeira vez como uma família improvisada mas real.

Hoje olho para trás e pergunto-me: será possível amar sem magoar quem mais amamos? Como equilibrar os nossos desejos com as necessidades dos nossos filhos? Talvez nunca haja respostas certas…

E vocês? Já sentiram este conflito entre ser mãe e ser mulher? Como encontraram o vosso equilíbrio?