Entre o Amor de Mãe e o Orgulho: O Dia em que Tudo Mudou
— Não achas que já chega, Jasmine? — ouvi-me dizer, a voz trémula, enquanto segurava o prato de arroz de pato que tinha passado a manhã inteira a preparar. O cheiro ainda pairava no ar da sala, misturado com o perfume doce das minhas netas, que corriam pelo corredor, alheias à tensão que se acumulava como nuvens negras antes de uma tempestade.
Jasmine nem sequer olhou para mim. Estava sentada à cabeceira da mesa, o cabelo castanho apanhado num coque perfeito, os olhos fixos no telemóvel. O David, meu filho, tentava sorrir, mas eu via-lhe o desconforto estampado no rosto. As minhas netas, a Inês e a Leonor, riam-se alto, brincando com os guardanapos de pano que eu tinha cuidadosamente dobrado em forma de cisne.
— Mãe, por favor… — murmurou o David, baixinho, como se tivesse medo de me magoar ou, pior ainda, de magoar a mulher.
A verdade é que nunca fui bem-vinda naquela casa. Desde o início do casamento deles, sentia-me uma intrusa. O sogro da Jasmine tinha-lhes oferecido aquela casa enorme em Cascais — um luxo para quem, como eu, cresceu num T2 em Almada. Depois compraram outro apartamento, hipotecaram-se até ao pescoço e agora vivem do arrendamento para pagar ao banco. Sempre achei tudo isso arriscado, mas nunca me pediram opinião.
O convite para aquele almoço de aniversário da Leonor foi inesperado. Pensei que talvez fosse uma oportunidade para recomeçarmos. Passei dias a pensar no que levar: comprei flores frescas no mercado, fiz arroz de pato como só a minha mãe sabia fazer e até levei um bolo de laranja caseiro. Queria mostrar que ainda havia espaço para mim naquela família.
Mas assim que entrei, percebi logo o ambiente gelado. Jasmine recebeu-me com um sorriso forçado e um “Olá, Charlotte”, sem sequer me beijar. As flores ficaram esquecidas num canto da cozinha. O arroz de pato foi posto de lado — “A Leonor não gosta de pato”, disse ela, sem olhar para mim.
Sentei-me à mesa com as mãos suadas e o coração apertado. Tentei conversar com a Inês sobre a escola, mas Jasmine interrompia sempre para corrigir alguma coisa ou mudar de assunto. Senti-me cada vez mais pequena.
Durante o almoço, Jasmine começou a falar alto sobre como era difícil gerir tudo sozinha — as miúdas, o trabalho remoto, as contas da casa. Olhava para o David como se ele fosse um peso morto. Ele limitava-se a acenar com a cabeça.
— Se ao menos tivéssemos mais ajuda… — disse ela, lançando-me um olhar fugaz.
— Eu posso ajudar — arrisquei. — Posso buscar as meninas à escola quando quiserem.
Jasmine riu-se, seca:
— Não é preciso, Charlotte. Temos tudo sob controlo.
O silêncio caiu pesado sobre a mesa. Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos, mas engoli em seco. O David olhou para mim com pena — ou seria vergonha?
Depois do bolo (um bolo industrial comprado no supermercado), Jasmine começou a arrumar tudo à pressa. Nem sequer provou o meu bolo de laranja. Fiquei ali sentada na sala, sozinha, enquanto ouvia as vozes abafadas na cozinha.
Foi então que ouvi:
— Não percebo porque é que tens de convidar a tua mãe para tudo — disse Jasmine ao David. — Ela só complica as coisas.
— É minha mãe… — respondeu ele, num tom baixo.
— Pois, mas esta casa é nossa. E eu já estou farta desta pressão! — A voz dela subiu um tom.
Senti-me esmagada por dentro. Levantei-me devagar e fui buscar o casaco. Quando passei pela cozinha, Jasmine nem me olhou nos olhos.
— Vou andando — disse eu ao David.
Ele hesitou antes de me abraçar. Senti-o frio, distante.
No caminho para casa, as lágrimas correram-me pelo rosto sem controlo. Lembrei-me de quando o David era pequeno e me pedia colo depois dos pesadelos; de quando lhe fazia sopa de feijão à noite porque dizia que era o melhor do mundo; de quando me prometeu que nunca deixaria ninguém afastar-nos.
Mas agora havia uma barreira invisível entre nós. Uma barreira feita de silêncios, mágoas e orgulho ferido.
Nos dias seguintes, tentei ligar-lhe várias vezes. Ele atendia sempre apressado:
— Agora não posso falar, mãe…
Ou então era Jasmine quem atendia:
— O David está ocupado.
As visitas às netas tornaram-se raras. Senti-me cada vez mais sozinha naquele apartamento silencioso em Almada. Os meus amigos diziam-me para dar tempo ao tempo, mas eu sabia que algo se tinha partido naquele almoço.
Comecei a questionar tudo: teria sido demasiado invasiva? Teria falhado como sogra? Ou será que Jasmine nunca quis realmente aceitar-me?
Uma tarde chuvosa, recebi uma mensagem do David:
“Mãe, precisamos de espaço. Não é nada pessoal.”
Chorei como há muito não chorava. Senti-me rejeitada pela pessoa que mais amava neste mundo.
Os meses passaram devagar. No Natal seguinte, não fui convidada para a ceia em Cascais. Passei a noite sozinha com fotografias antigas espalhadas pela mesa da sala. Olhei para os olhos do David em criança e perguntei-me onde tinha falhado.
Hoje escrevo estas palavras com o coração apertado e uma saudade imensa das minhas netas e do meu filho. Sei que talvez nunca volte a ser como antes. Mas continuo a perguntar-me: será que fiz tudo o que podia? Ou será que há feridas na família que nunca saram?
E vocês? Já sentiram este vazio dentro da própria família? Como se reconstrói uma ponte quando parece ter sido destruída para sempre?