Entre o Amor de Mãe e o Limite: Quando a Porta Não se Abre para Todos
— Mãe, por favor, não temos mais para onde ir. — A voz da minha filha, Eva, tremia do outro lado da linha. Era noite, e eu já estava deitada, mas o telefone tocou como um alarme de incêndio no peito. — O Christian perdeu o trabalho outra vez. A senhoria quer-nos fora até ao fim do mês. Eu… eu não sei o que fazer.
Fechei os olhos, sentindo o peso de cada palavra. Ariana, a minha neta de seis anos, devia estar a ouvir tudo, talvez agarrada à perna da mãe, olhos grandes de medo e incerteza. Oiço-lhe a respiração ansiosa ao fundo. O meu coração apertou-se.
— Eva, sabes que a casa é tua — respondi, tentando manter a voz firme. — Tu e a Ariana podem vir quando quiserem.
Houve um silêncio estranho. Eva percebeu logo o que eu não disse.
— E o Christian? — perguntou, quase num sussurro.
Levantei-me da cama e fui até à janela. A noite estava escura, as luzes da rua desenhavam sombras no chão da sala. Lembrei-me da última vez que Christian viveu cá em casa. O cheiro a cerveja barata pela manhã, as discussões por causa do dinheiro, os gritos abafados atrás da porta do quarto. Lembrei-me de como Ariana chorava baixinho no meu colo enquanto os pais discutiam na cozinha.
— Eva… — comecei, sentindo um nó na garganta — eu não consigo passar por isso outra vez. Não posso ter o Christian aqui em casa.
O silêncio do outro lado foi mais pesado do que qualquer grito.
— Mãe… ele é o meu marido. — A voz dela era um fio de voz, quase infantil.
— E tu és a minha filha. E a Ariana é a minha neta. Eu não vou deixar-vos na rua. Mas ele… ele tem de arranjar outra solução.
Ouvi um soluço abafado. Ariana começou a chorar também.
— Não faças isto, mãe…
Sentei-me no sofá, sentindo-me velha e cansada. Recordei todos os sacrifícios que fiz por Eva: as noites sem dormir quando ela era bebé, as vezes que trabalhei dobrado para lhe pagar os estudos, os anos em que fui mãe e pai ao mesmo tempo depois que o pai dela nos deixou. E agora… agora era eu quem punha limites.
No dia seguinte, Eva apareceu à porta com duas malas e Ariana pela mão. Christian ficou no carro, olhando para nós com olhos de cão perdido. Não desci para falar com ele. Eva subiu as escadas devagar, como se cada degrau fosse uma sentença.
— Ele vai tentar arranjar um quarto — disse ela, sem me olhar nos olhos. — Só precisa de uns dias…
— Eva, não compliques mais — respondi, tentando ser firme mas sentindo-me cruel. — Já conversámos sobre isto.
Ariana correu para mim e abraçou-me com força. Senti-lhe o corpo magro e quente contra o meu peito. Ela não disse nada; só chorou baixinho.
Os primeiros dias foram um misto de alívio e culpa. A casa parecia mais leve sem Christian — não havia discussões nem portas a bater. Mas Eva andava calada, arrastando-se pela casa como uma sombra. Passava horas ao telefone com ele, chorava no banho e tentava sorrir para Ariana à mesa do jantar.
Uma noite ouvi-a discutir com Christian ao telefone na varanda:
— A minha mãe não te quer cá! Achas que eu gosto disto? Achas?!
Ariana apareceu na sala com os olhos vermelhos.
— A mamã vai-se embora outra vez? — perguntou-me, agarrando-se ao meu braço.
Abracei-a com força.
— Não, querida. A mamã está só triste. Mas estamos juntas agora.
No dia seguinte, Christian apareceu à porta sem avisar. Tocou à campainha insistentemente até eu abrir.
— Dona Rosa… por favor… só quero ver a minha filha — disse ele, com voz baixa e olhar cansado.
Olhei-o nos olhos e vi ali um homem derrotado. Mas também vi o mesmo homem que me faltou ao respeito tantas vezes, que nunca conseguiu manter um emprego mais de seis meses, que fazia Eva chorar noite sim noite não.
— Podes vê-la no parque amanhã à tarde — respondi secamente. — Aqui em casa não entras.
Ele baixou a cabeça e afastou-se sem protestar.
Eva ficou furiosa comigo quando soube:
— Estás a destruir a minha família! Achas que é fácil para mim escolher entre ti e ele?
— Não te peço que escolhas — respondi, tentando conter as lágrimas. — Só te peço que escolhas o melhor para ti e para a Ariana.
Ela atirou-me um olhar magoado e trancou-se no quarto durante horas.
Os dias passaram lentos e pesados. Ariana começou a perguntar pelo pai todos os dias. Eva tornou-se cada vez mais distante; mal falava comigo, só saía do quarto para ir trabalhar ou levar Ariana à escola.
Uma noite ouvi-a chorar baixinho na cozinha. Fui ter com ela e sentei-me ao seu lado em silêncio.
— Eu amo-o, mãe… mas às vezes sinto que estou presa numa vida que não escolhi — confessou ela, olhando para as mãos trémulas.
— Ninguém escolhe tudo na vida, filha — disse-lhe suavemente. — Mas podemos escolher onde queremos estar agora.
Ela olhou-me nos olhos pela primeira vez em dias.
— E se eu quiser voltar para ele? Vais fechar-me a porta?
O medo atravessou-me como uma faca. Não queria perder a minha filha outra vez; mas também não podia abrir mão da paz que finalmente tinha encontrado em casa.
— Nunca te vou fechar a porta — prometi-lhe, sentindo as lágrimas correrem-me pelo rosto. — Mas preciso de proteger-me também.
Na manhã seguinte encontrei uma carta dela na mesa da cozinha:
“Mãe,
Obrigada por tudo o que fizeste por mim e pela Ariana. Preciso de tentar reconstruir a minha família com o Christian, mesmo sabendo dos riscos. Não quero que Ariana cresça sem pai. Se correr mal… espero que ainda tenhas espaço para nós no teu coração.”
Fiquei horas sentada à mesa com aquela carta nas mãos. Ariana veio abraçar-me em silêncio; sabia que algo tinha mudado outra vez.
Agora passo os dias à espera de notícias delas. Pergunto-me se fiz bem em impor limites ou se devia ter sido mais tolerante com Christian por amor à minha filha e neta. Será que proteger quem amamos justifica magoar outros? Ou será que há momentos em que precisamos mesmo fechar a porta para salvarmos a nós próprios?
E vocês? O que fariam no meu lugar?