Entre o Amor de Mãe e a Dor da Desilusão: O Apartamento da Discórdia

— Mãe, não podes fazer isso comigo! — gritou o Ricardo, a voz embargada pela raiva e pelo desespero. Eu estava sentada à mesa da cozinha, as mãos trémulas em cima do tampo frio, tentando encontrar forças para não ceder àquela chantagem emocional que só um filho sabe fazer.

Olhei para ele, os olhos tão parecidos com os do pai dele, e senti uma pontada no peito. Lembrei-me do dia em que o trouxe ao colo para casa pela primeira vez, tão pequeno, tão meu. Agora, era um homem feito, mas parecia-me mais distante do que nunca.

— Ricardo, não é uma questão de querer ou não querer — tentei explicar, a voz baixa, quase um sussurro. — É uma questão de justiça. E de respeito.

Ele bufou, levantando-se bruscamente da cadeira. — Justiça? Respeito? Achas justo deixares o apartamento para estranhos quando eu sou teu único filho?

A verdade é que durante anos pensei em transferir aquele apartamento para o nome dele. Era o meu pequeno refúgio em Lisboa, comprado com o suor de décadas de trabalho como professora primária. Sempre imaginei que seria dele um dia, talvez quando casasse, ou quando eu já não estivesse cá. Mas tudo mudou quando a Heather entrou nas nossas vidas.

Heather — ou Rita, como ela insiste que a chamemos agora — era uma jovem simpática à primeira vista. Conheceram-se na faculdade e depressa começaram a namorar. No início, fiz tudo para acolhê-la. Convidei-os para jantares, ofereci-lhe prendas no Natal. Mas com o tempo, fui percebendo que havia algo nela que me inquietava: uma espécie de frieza calculista, um olhar sempre atento ao que podia ganhar.

As discussões começaram pouco depois do casamento deles. Ricardo vinha cá cada vez menos, e quando vinha era só para pedir dinheiro ou favores. Uma vez pediu-me para lhes emprestar o apartamento durante uns meses porque estavam “com dificuldades”. Cedi, claro — sou mãe antes de tudo. Mas quando fui lá buscar umas coisas minhas, encontrei a Heather a mostrar o apartamento a uma amiga dela.

— Estamos a pensar pôr isto no Airbnb — disse-me ela, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

— O apartamento é meu — respondi, tentando manter a calma.

Ela encolheu os ombros. — O Ricardo disse que em breve vai ser nosso.

Foi aí que percebi: não era só o meu filho que estava a ser levado por aquela onda de ganância. Era eu que estava a ser empurrada para fora da minha própria vida.

Confrontei o Ricardo naquela noite. Ele negou tudo ao início, mas depois admitiu: — A Heather só quer garantir o nosso futuro. Não percebes? Tu já tens idade…

Aquelas palavras ficaram-me atravessadas na garganta durante semanas. “Tu já tens idade” — como se eu fosse um móvel velho pronto a ser descartado.

Os meses passaram e as tensões aumentaram. A Heather começou a ligar-me diretamente, exigindo saber quando é que ia passar finalmente o apartamento para o nome deles. Chegou ao ponto de me ameaçar: — Se não fizeres isto pelo Ricardo, ele nunca te vai perdoar.

Foi nesse dia que decidi: nunca lhes daria aquele apartamento. Não por vingança, mas porque percebi que aquilo que eu via como um gesto de amor estava a ser interpretado como uma obrigação, quase um direito adquirido.

Comecei a arrendar o apartamento a estudantes estrangeiros. O dinheiro ajudava-me a pagar as contas e dava-me uma sensação de autonomia que há muito não sentia. Mas cada vez que via o Ricardo, sentia um muro invisível entre nós.

— Não percebes que estás a destruir a nossa família? — atirou ele numa das últimas discussões.

— Não sou eu que estou a destruir nada — respondi-lhe com lágrimas nos olhos. — Só quero respeito.

A minha irmã Teresa tentou intervir várias vezes. — Maria do Carmo, talvez devas ceder um pouco… É teu filho…

Mas eu já não conseguia confiar. O medo de ser usada era maior do que qualquer laço de sangue.

No Natal passado, tentei reunir todos cá em casa. Preparei o bacalhau com todos como sempre fazia, pus os pratos bonitos na mesa e esperei por eles com o coração apertado. O Ricardo apareceu sozinho, cabisbaixo.

— A Heather não quis vir — disse-me sem me olhar nos olhos.

Comemos em silêncio. No fim da noite, ele levantou-se para sair e hesitou à porta:

— Mãe… ainda vais mudar de ideias?

Olhei-o nos olhos e vi ali o menino que criei, mas também o homem magoado e ressentido em que se tinha tornado.

— Não sei, filho… Não sei mesmo.

Agora passo os dias entre recordações e dúvidas. Fiz bem em proteger aquilo que é meu? Ou devia ter cedido em nome da paz familiar? Será que algum dia ele vai perceber que amor não se mede em propriedades?

Às vezes pergunto-me: quantas famílias se desfazem por causa de coisas materiais? E será possível reconstruir aquilo que se perdeu?