Entre Montanhas e Silêncios: O Verão que Mudou a Minha Família
— Não entres já, Miguel. — A voz da Teresa ecoou pelo corredor frio, cortando o silêncio pesado da casa. Eu e a Ana, minha esposa, trocámos um olhar rápido. O cheiro a lenha queimada misturava-se com a tensão no ar. O verão na Serra da Estrela pode ser traiçoeiro: dias quentes, noites geladas e, aparentemente, recepções ainda mais frias.
Tínhamos decidido este ano ficar por Portugal. Depois de meses de trabalho exaustivo e discussões sobre dinheiro, parecia-nos sensato explorar o nosso próprio país. Quando a Teresa soube dos nossos planos, insistiu para ficarmos com ela. “A casa é grande, e a vista vale por mil viagens”, disse ao telefone. Mas agora, ali à porta, sentia-me como um intruso.
— O que se passa, Teresa? — perguntei, tentando sorrir.
Ela hesitou antes de responder:
— O pai está cá. Chegou ontem sem avisar.
O meu coração bateu mais forte. O meu pai e eu não falávamos há quase três anos, desde aquela discussão sobre a venda da casa dos avós. Ele queria vender tudo; eu queria preservar as memórias. Nunca lhe perdoei as palavras duras que trocámos naquela noite.
A Ana apertou-me a mão. — Se calhar devíamos ir para um hotel — sussurrou.
— Não — respondi, mais para mim do que para ela. — Já cá estamos.
Entrámos. O ambiente era estranho: a sala cheia de fotografias antigas, o relógio de parede a marcar cada segundo como se fosse um julgamento. O meu pai estava sentado junto à lareira, olhar perdido no fogo.
— Olá, pai — disse eu, a voz embargada.
Ele não respondeu de imediato. Teresa fez um gesto para nos sentarmos. A Ana tentou quebrar o gelo:
— A vista daqui é mesmo linda, Teresa. Deve ser maravilhoso acordar com estas montanhas.
Teresa sorriu, mas o sorriso não lhe chegou aos olhos.
O jantar foi um desfile de silêncios e olhares furtivos. O meu pai limitava-se a responder com monossílabos. Eu sentia-me um estranho na minha própria família. Quando finalmente subimos ao quarto de hóspedes, desabafei com a Ana:
— Não devia ter vindo. Isto foi um erro.
Ela sentou-se ao meu lado na cama:
— Tens de falar com ele, Miguel. Não podes fugir disto para sempre.
Na manhã seguinte, acordei cedo. Desci à cozinha e encontrei o meu pai a preparar café.
— Queres? — perguntou, sem me olhar nos olhos.
Assenti. O silêncio entre nós era tão denso que quase se podia cortar à faca.
— Porque vieste? — perguntei finalmente.
Ele pousou a chávena com força na mesa:
— Porque esta também é a minha casa. E porque estou cansado de fugir.
Ficámos ali sentados, dois homens demasiado orgulhosos para pedir desculpa. Lembrei-me dos verões passados ali, das caminhadas pelas montanhas com o meu pai quando ainda era criança. Quando é que tudo se perdeu?
Ao longo dos dias seguintes, tentei aproximar-me dele. Uma tarde, convidei-o para uma caminhada até ao Covão d’Ametade. No início, caminhámos em silêncio. Depois, ele começou a falar:
— Sabes, Miguel… Quando vendi a casa dos teus avós, pensei que estava a fazer o melhor para todos. Mas percebo agora que te magoei.
Parei e olhei-o nos olhos:
— Não era só uma casa para mim. Era onde me sentia seguro… onde éramos uma família.
Ele suspirou:
— Eu também sinto falta disso. Mas não sabia como te dizer.
Voltámos para casa em silêncio, mas algo tinha mudado. Pela primeira vez em anos, senti que havia esperança.
Nessa noite, durante o jantar, Teresa explodiu:
— Estou farta! Farta deste silêncio! Vocês os dois andam às voltas há anos e ninguém diz o que sente! Acham que é fácil viver no meio disto?
A Ana tentou acalmá-la:
— Teresa…
Mas ela continuou:
— Sempre fui eu a tentar juntar-vos! E no fim sou eu que fico sozinha nesta casa enorme!
O meu pai levantou-se e saiu da sala. Fui atrás dele.
Encontrei-o no alpendre, a olhar para as estrelas.
— Pai…
Ele virou-se para mim, olhos marejados:
— Perdoa-me, filho. Não soube ser melhor pai para ti.
Abracei-o pela primeira vez em anos. Senti o peso dos rancores antigos a desvanecer-se um pouco.
No último dia, antes de partirmos, Teresa chamou-me à parte:
— Obrigada por teres vindo, Miguel. Talvez agora possamos todos recomeçar.
No carro, enquanto descíamos as curvas da serra, olhei para trás e vi a casa a desaparecer entre as árvores. Senti uma mistura de alívio e tristeza.
Será que alguma vez conseguimos realmente perdoar quem mais amamos? Ou será que há feridas que nunca saram completamente? Gostava de saber se alguém já sentiu o mesmo…