Entre Migalhas e Banquetes: O Preço do Silêncio
— Eles já chegaram — sussurrei para a minha mãe, tentando não deixar transparecer o nervosismo na voz. O som das chaves a rodar na porta ecoou pela casa, interrompendo o silêncio pesado que pairava sobre a nossa mesa de jantar. Estávamos a comer papas de aveia, outra vez, porque o dinheiro não dava para mais. A minha mãe olhou-me de lado, os olhos cansados mas cheios de uma dignidade silenciosa.
Os meus tios entraram, carregados de sacos do supermercado caro — daqueles que só se vêem nas mãos de quem nunca teve de contar trocos. Cumprimentaram-nos com um aceno apressado.
— Boa noite, Mariana. Boa noite, tia Rosa — disse o meu tio António, já a olhar para o relógio.
— Queres juntar-te a nós? — perguntei, forçando um sorriso. — Ainda temos papas quentes.
A minha tia Lurdes fez uma careta quase imperceptível e respondeu:
— Não, obrigada. Já jantámos fora. Estamos cansados, vamos descansar um pouco.
Fecharam-se na sala deles, deixando-nos com o cheiro a comida gourmet que escapava dos sacos. O silêncio voltou, mas agora era mais pesado, como se cada colherada de papa nos lembrasse do que não tínhamos.
A minha mãe suspirou e pousou a colher.
— Não te preocupes com isso, Mariana. Cada um faz as suas escolhas.
Mas eu sabia que não era só uma questão de escolhas. Era uma questão de justiça. Porque é que eles tinham tudo e nós tão pouco? Porque é que tínhamos de viver todos juntos nesta casa antiga em Almada, mas separados por paredes invisíveis feitas de dinheiro e ressentimento?
Lembro-me do dia em que viemos para aqui. O meu pai tinha acabado de morrer num acidente na fábrica. A minha mãe ficou sem nada — nem emprego, nem casa. Os meus tios ofereceram-nos um quarto nesta casa grande que herdaram dos avós. “Família é para estas coisas”, disseram na altura. Mas nunca nos deixaram esquecer que estávamos aqui por favor.
Os dias passaram e as diferenças foram crescendo. Eles tinham carro novo todos os anos; nós apanhávamos o autocarro velho para tudo. Eles iam de férias ao Algarve; nós ficávamos em casa a ver televisão com o volume baixo para não incomodar.
Uma noite, ouvi-os discutir na sala:
— Não podemos continuar assim, António! — dizia a tia Lurdes. — A Rosa e a Mariana têm de arranjar maneira de sair daqui. Isto não é vida para ninguém!
O meu tio respondeu num tom baixo, mas firme:
— São família, Lurdes. Não podemos pô-las na rua.
Senti-me pequena, invisível. Como se fosse um peso que ninguém queria carregar.
Na escola, as coisas não eram melhores. Os colegas gozavam comigo por usar roupas velhas e sapatos gastos. Uma vez, a professora perguntou o que tínhamos comido ao pequeno-almoço e eu menti: disse que tinha sido pão com queijo quando na verdade só tinha bebido água com açúcar.
A minha mãe fazia tudo para me proteger. Trabalhava como costureira em casa, costurando vestidos para as senhoras do bairro. Às vezes ficava até tarde da noite à máquina de costura, os olhos vermelhos de cansaço.
Um dia, cheguei a casa mais cedo e ouvi-a chorar baixinho na cozinha.
— Mãe? — perguntei, entrando devagar.
Ela limpou as lágrimas rapidamente e sorriu.
— Está tudo bem, filha. Só estou cansada.
Mas eu sabia que não era só cansaço. Era tristeza, era frustração, era sentir-se sempre em dívida.
O tempo foi passando e as tensões aumentaram. Os meus tios começaram a trazer amigos para jantares luxuosos na sala grande. Nós ficávamos no quarto pequeno, a ouvir as gargalhadas e o tilintar dos copos através da porta fechada.
Uma noite, não aguentei mais. Saí do quarto e fui até à sala. Os convidados olharam para mim como se eu fosse um fantasma.
— Mariana! — exclamou a tia Lurdes, visivelmente incomodada. — Precisas de alguma coisa?
Senti o rosto arder de vergonha, mas respondi:
— Só queria perguntar se podia usar a cozinha para aquecer leite para a minha mãe.
Houve um silêncio constrangedor antes do meu tio dizer:
— Claro, filha. Vai lá.
Enquanto aquecia o leite, ouvi-os cochichar sobre mim. “Coitada…”, “É uma situação complicada…”, “A Rosa devia arranjar outro marido…”. Saí dali com o coração apertado.
No dia seguinte, decidi confrontar a minha mãe.
— Mãe, porque é que aceitamos isto? Porque é que temos de viver assim?
Ela olhou-me nos olhos e disse:
— Porque às vezes não há outra escolha, Mariana. Porque ser forte é aguentar quando não há alternativa.
Mas eu não queria ser forte assim. Queria justiça. Queria igualdade.
Comecei a estudar mais, a esforçar-me para conseguir uma bolsa para a universidade. Queria sair dali, dar uma vida melhor à minha mãe e provar aos meus tios que não éramos um fardo.
No dia em que recebi a carta da universidade do Porto com a notícia da bolsa integral, chorei como nunca tinha chorado antes. A minha mãe abraçou-me forte e disse:
— Estou tão orgulhosa de ti!
Os meus tios deram-me os parabéns com sorrisos forçados.
— Vês? Sempre dissemos que eras inteligente — disse o tio António.
Mas eu sabia que no fundo estavam aliviados por finalmente nos verem partir.
No último jantar antes de irmos embora, sentei-me à mesa com todos. O ambiente estava tenso.
— Obrigada por tudo — disse eu, tentando soar sincera. — Sei que não foi fácil para ninguém.
A tia Lurdes respondeu:
— Esperamos que encontres o teu caminho, Mariana.
Naquela noite percebi que nunca seríamos realmente família enquanto houvesse tanta desigualdade entre nós.
Agora vivo no Porto com a minha mãe num pequeno apartamento arrendado pela universidade. Não temos muito dinheiro, mas temos paz e dignidade. Ainda penso nos meus tios às vezes — se sentem falta do silêncio desconfortável ou se finalmente respiram aliviados sem nós por perto.
Pergunto-me: quantas famílias vivem assim em Portugal? Quantas Marianas existem por aí, presas entre migalhas e banquetes? Será que algum dia vamos conseguir sentar-nos todos à mesma mesa sem vergonha ou ressentimento?