Entre Mentiras e Verdades: O Que Nunca Disse aos Pais dos Meus Alunos
— Dona Isabel, a sua filha não fez o trabalho de casa outra vez. — A minha voz saiu baixa, quase trémula, enquanto olhava para a mãe da Mariana, que me fitava com olhos frios e desconfiados.
— Impossível, professora. A Mariana disse-me que passou a tarde toda a estudar! — respondeu ela, cruzando os braços e lançando um olhar de desafio.
Por dentro, suspirei. Quantas vezes já tinha ouvido aquela frase? Quantas vezes já tinha visto pais defenderem os filhos com unhas e dentes, sem sequer questionarem a possibilidade de estarem a ser enganados? O corredor da escola estava cheio de vozes abafadas, mas naquele momento só conseguia ouvir o martelar do meu próprio coração.
Sou professora há vinte e dois anos numa escola pública em Almada. Já vi de tudo: crianças brilhantes que se perdem pelo caminho, miúdos problemáticos que surpreendem pela positiva, pais ausentes, pais superprotetores. Mas há uma verdade que poucos querem ouvir: os vossos filhos não são santos. E, sim, eles mentem. Mentem mais do que imaginam.
Lembro-me da primeira vez que percebi isso. O João, um miúdo loiro de olhos vivos, tinha sempre uma desculpa para tudo. Um dia, apareceu-me com um teste rasgado ao meio.
— Professora, foi o cão que comeu — disse ele, com uma cara tão séria que quase acreditei.
Quando liguei à mãe dele, ela ficou indignada:
— O João nunca mente! Deve ter sido mesmo o cão. Ele adora animais!
Na semana seguinte, encontrei o João a mostrar aos colegas como rasgar um teste sem deixar marcas no nome. Senti uma mistura de raiva e tristeza. Não era só ele que me enganava; era também a mãe dele que se deixava enganar.
Com o tempo, aprendi a reconhecer os sinais: os olhares desviados, as desculpas esfarrapadas, os trabalhos copiados da internet. E aprendi também que muitos pais preferem acreditar numa mentira confortável do que enfrentar uma verdade dolorosa.
A minha colega Filomena costuma dizer:
— Se os pais passassem um dia na nossa pele, saíam daqui a chorar.
E é verdade. Já vi mães chorarem nas reuniões porque descobriram que o filho afinal não era o anjo que pensavam. Já vi pais gritarem comigo no portão da escola porque recusei dar uma nota mais alta ao filho deles. Já fui insultada por dizer simplesmente: “O seu filho precisa de estudar mais”.
Mas o pior são os silêncios. Os silêncios dos pais que não querem saber. Os silêncios dos alunos que carregam segredos pesados demais para a idade. Como a Inês, que apareceu um dia com os olhos inchados de tanto chorar.
— O que se passa, Inês? — perguntei-lhe num canto da sala.
Ela hesitou antes de sussurrar:
— A minha mãe diz que sou burra porque tirei negativa a Matemática.
Abracei-a com força. Por vezes, as feridas mais profundas não se veem nos testes ou nos cadernos.
Houve também o caso do Tiago, um rapaz tímido e calado. Os pais dele nunca vinham às reuniões. Um dia, descobri que ele passava as tardes sozinho em casa porque os pais trabalhavam até tarde. Os trabalhos de casa eram sempre feitos à pressa, entre o micro-ondas e a televisão ligada.
Quando finalmente consegui falar com a mãe dele ao telefone, ela disse:
— Professora, eu faço o melhor que posso. Mas não posso estar em todo o lado.
Compreendi. Nem todos os pais têm tempo ou paciência para acompanhar os filhos como gostariam. Mas às vezes bastava um pouco mais de atenção para evitar tantos mal-entendidos.
Já tive alunos que mentiram sobre bullying para justificar más notas. Outros inventaram doenças para faltar aos testes. Alguns copiaram descaradamente nos exames e depois juraram inocência perante os pais.
Lembro-me da reunião mais tensa da minha carreira. O Pedro tinha sido apanhado a copiar no teste final de História. Chamei os pais à escola.
— O meu filho nunca faria isso! — gritou o pai dele, batendo com a mão na mesa.
Mostrei-lhes o teste original do colega do lado, igual ao do Pedro até nos erros ortográficos.
A mãe começou a chorar. O pai levantou-se e saiu porta fora sem dizer palavra.
No dia seguinte, o Pedro veio ter comigo no recreio:
— Professora… desculpe… — murmurou ele, com lágrimas nos olhos.
Abracei-o. Porque no fundo todos erramos. Mas só cresce quem aprende com os erros.
Há dias em que chego a casa exausta e me pergunto se vale a pena tanta luta. O meu marido diz-me muitas vezes:
— Tu dás demais por eles e recebes pouco em troca.
Talvez tenha razão. Mas não consigo ser diferente. Cada aluno é um mundo inteiro à espera de ser descoberto. E cada mentira é um pedido de ajuda disfarçado.
No entanto, há algo que me custa admitir: também eu já menti aos pais dos meus alunos. Já disse “o seu filho está a melhorar” quando sabia que estava cada vez pior. Já disse “não se preocupe” quando sabia que havia motivos para preocupação.
Fiz isso para proteger as crianças? Ou para proteger-me a mim própria do confronto? Não sei responder.
O sistema educativo em Portugal está longe de ser perfeito. As turmas são grandes demais, os recursos escassos, as exigências cada vez maiores. Por vezes sinto-me sozinha nesta batalha diária contra a indiferença e as expectativas irreais.
Mas depois há momentos que me fazem acreditar outra vez: o sorriso de um aluno quando finalmente entende uma matéria difícil; o agradecimento sincero de um pai que percebeu onde falhou; o abraço apertado de uma criança no final do ano letivo.
Ainda assim, continuo a perguntar-me: será que algum dia conseguiremos ser verdadeiramente honestos uns com os outros? Será que os pais estão preparados para ouvir aquilo que realmente pensamos sobre os seus filhos?
E vocês? Conseguiriam lidar com a verdade sobre quem são realmente os vossos filhos?