Entre Irmãs e Filhos: O Peso de Rivalidades Antigas
— Mãe, tu não vês? A Marta faz sempre questão de mostrar que o Diogo é melhor do que o Tomás! — A voz da Inês ecoou pela cozinha, carregada de mágoa e cansaço. Eu estava a cortar cebolas para o jantar, mas as lágrimas que me ardiam nos olhos não eram só culpa delas.
Desde que me lembro, as minhas filhas nunca foram próximas. Inês, a mais velha, nasceu num inverno rigoroso, com olhos grandes e uma sensibilidade que me assustava. Sempre teve dificuldades na escola, chorava facilmente e sentia-se deslocada nos grupos. Marta, por outro lado, chegou dois anos depois, num verão quente, sorridente e cheia de energia. Era daquelas crianças que conquistavam toda a gente sem esforço — professores, vizinhos, até os meus próprios amigos.
Quando eram pequenas, tentei de tudo para as aproximar. Inscrevi-as nas mesmas atividades: ballet, natação, aulas de piano. Mas Inês sentia-se sempre ofuscada pela irmã. Lembro-me de um Natal em que Inês passou horas a montar um puzzle sozinha enquanto Marta recebia elogios por cantar músicas de Natal para a família. O olhar triste da Inês ficou-me gravado.
Os anos passaram e cada uma seguiu o seu caminho. Inês casou cedo com o Rui, um rapaz calmo e trabalhador, mas sem grandes ambições. Tiveram o Tomás, um menino doce mas tímido, muito parecido com a mãe. Marta demorou mais tempo a assentar. Viajou pelo mundo, estudou fora, namorou vários rapazes até conhecer o Miguel — um advogado bem-sucedido. O Diogo nasceu pouco depois do casamento deles: um miúdo extrovertido, cheio de energia e sempre rodeado de amigos.
A rivalidade entre as minhas filhas nunca foi aberta — nunca houve gritos ou discussões violentas. Era um veneno subtil, feito de comparações silenciosas e olhares de desdém. Mas agora, com os netos, tudo parecia ter ganho uma nova dimensão.
No último aniversário do Tomás, a Marta chegou atrasada com o Diogo e um presente caro: um drone topo de gama. O Tomás ficou fascinado, claro. Mas vi nos olhos da Inês uma mistura de raiva e humilhação. Depois do bolo, ouvi-a sussurrar ao Rui:
— Claro que tinha de ser ela a trazer o presente mais caro… Como se o nosso filho precisasse disso para ser feliz.
O Rui tentou acalmá-la, mas percebi que aquela ferida era antiga demais para sarar com palavras doces.
As comparações continuaram em cada encontro familiar. Se o Tomás tirava um 16 a Matemática, a Marta fazia questão de dizer que o Diogo tinha tido 18. Se o Diogo ganhava uma medalha no futebol, a Inês inscrevia o Tomás em aulas extra de ténis para tentar equilibrar as coisas.
Eu tentava intervir:
— Filhas, cada criança tem o seu ritmo… Não precisam de competir assim.
Mas era como falar para paredes. Senti-me cada vez mais impotente.
Um dia, depois de um almoço de domingo particularmente tenso — em que o Diogo gozou com o Tomás por este não saber andar de skate — encontrei a Inês sentada no jardim, sozinha.
— Mãe… — disse ela baixinho — Sinto que falhei como mãe. O Tomás é tão inseguro… E eu só queria protegê-lo deste mundo onde parece que só os melhores têm valor.
Sentei-me ao lado dela e abracei-a.
— O Tomás é maravilhoso tal como é. E tu também. Não deixes que a sombra da tua irmã te faça esquecer isso.
Ela chorou no meu ombro como quando era pequena.
Na semana seguinte, recebi uma chamada da Marta:
— Mãe, achas que estou a ser demasiado competitiva? A Inês não fala comigo há dias… Só queria que os nossos filhos fossem amigos.
Respirei fundo antes de responder:
— Talvez estejas a repetir connosco aquilo que sentiste em criança. Mas ainda vais a tempo de mudar as coisas.
Houve silêncio do outro lado da linha.
Os meses passaram e as coisas não melhoraram muito. Os rapazes começaram a evitar-se na escola; os pais trocavam mensagens frias sobre horários e festas. Eu sentia-me dividida entre as duas filhas — como se cada gesto meu pudesse ser interpretado como favoritismo.
No Natal desse ano, decidi arriscar tudo. Convidei toda a família para minha casa e preparei uma surpresa: reuni fotografias antigas das duas irmãs em crianças — momentos raros em que riam juntas ou se abraçavam sem medo nem inveja.
Durante a ceia, pedi silêncio e mostrei as fotos num projetor improvisado na sala. Vi lágrimas nos olhos da Inês e da Marta. Pela primeira vez em anos, abraçaram-se sem reservas.
No final da noite, quando todos já tinham ido embora, sentei-me sozinha na sala escura. Perguntei-me se aquele momento seria suficiente para quebrar o ciclo ou se estava apenas a adiar o inevitável.
Será possível curar feridas tão antigas? Ou estamos todos condenados a repetir os mesmos erros geração após geração?