Entre Duas Portas: O Silêncio de Uma Mãe Portuguesa

— Não podes continuar a aparecer aqui sem avisar, mãe. — A voz da minha filha, Inês, cortou o ar da sala como uma lâmina. Eu estava de pé, com o saco das compras ainda na mão, sentindo o cheiro do pão quente que tinha trazido da padaria da esquina, como fazia todas as sextas-feiras desde que ela se casou. O meu genro, Rui, nem olhou para mim. Estava sentado no sofá, olhos colados ao telemóvel, como se eu fosse invisível.

O silêncio que se seguiu foi tão pesado que quase me sufocou. Tentei sorrir, disfarçar o embaraço, mas as mãos tremiam-me. — Desculpa, filha. Pensei que te fazia jeito. Trouxe o teu bolo favorito, aquele de laranja que a avó fazia.

Inês suspirou, cansada. — Mãe, eu agradeço, mas a Leonor está a dormir e o Rui tem trabalhado tanto… Precisamos de espaço. Não podes simplesmente entrar assim.

Senti o chão fugir-me dos pés. Desde que o meu marido, Manuel, morreu, há três anos, a minha casa tornou-se um lugar vazio, ecoando memórias. A minha vida passou a girar em torno dos meus filhos e netos. Era tudo o que me restava. Mas, de repente, percebi que talvez já não houvesse lugar para mim ali.

Saí da casa da Inês com o coração apertado, o saco das compras ainda cheio. O vento frio de Lisboa batia-me no rosto, misturando-se com as lágrimas que teimavam em cair. Caminhei devagar até ao autocarro, sentindo-me mais sozinha do que nunca.

Cheguei a casa e sentei-me à mesa da cozinha, olhando para as fotografias antigas penduradas na parede. O João, o meu filho mais velho, também já não me procurava. Desde que casou com a Sofia, tudo mudou. Ela nunca gostou de mim. Sempre achei que era coisa da minha cabeça, mas os olhares de lado, os sorrisos forçados, as conversas interrompidas sempre que eu entrava na sala… tudo isso foi-se acumulando como pó nos cantos da casa.

Lembro-me do último Natal. Tinha passado dias a preparar tudo: o bacalhau, as rabanadas, o arroz doce. Quando chegaram, a Sofia ficou na cozinha ao telemóvel, nem sequer me perguntou se precisava de ajuda. O João, coitado, tentava disfarçar, mas percebia-se o desconforto. Os meus netos, o Tomás e a Matilde, correram para o quarto, entretidos com os tablets. Senti-me uma estranha na minha própria casa.

— Mãe, a Sofia prefere passar o Natal com os pais dela este ano. — O João disse-me isto ao telefone, semanas depois. — Não leves a mal, está bem? É só para variar.

Variedade. Como se o amor de mãe fosse um prato que se troca para não enjoar.

Os dias passaram lentos. Acordava cedo, fazia o café, punha a mesa para dois, por hábito. Depois lembrava-me: já não há ninguém para partilhar o pão quente. Oiço os vizinhos a rir no corredor, famílias inteiras a conversar, e sinto um vazio tão grande que chega a doer fisicamente.

Tentei ocupar o tempo. Fui à igreja, inscrevi-me num grupo de costura, até tentei aprender informática na junta de freguesia. Mas nada preenchia o buraco que ficou depois que os meus filhos deixaram de precisar de mim.

Uma tarde, decidi ligar à Inês. — Filha, posso ir buscar a Leonor à escola amanhã? Fazia-me bem sair de casa.

— Mãe, não é preciso. A Leonor vai para casa de uma amiga. — A voz dela era distante, apressada. — Olha, depois ligo-te, está bem?

Desligou antes que eu pudesse responder. Fiquei ali, com o telefone na mão, a olhar para o vazio. Senti uma raiva surda, misturada com tristeza. O que fiz de errado? Dei-lhes tudo. Sacrifiquei-me, trabalhei noites inteiras para que não lhes faltasse nada. E agora, nem um telefonema, nem um convite para jantar.

Na semana seguinte, fui ao supermercado. Encontrei a Dona Amélia, vizinha do terceiro andar. — Então, Maria do Carmo, como vai isso?

— Vai-se andando, Dona Amélia. — Sorri, mas ela percebeu logo.

— Não tem passado lá por casa dos filhos? — perguntou, com aquele jeito curioso de quem quer saber tudo.

— Eles andam ocupados, sabe como é… — respondi, tentando não mostrar a mágoa.

Ela pousou a mão no meu braço. — Não se deixe ir abaixo, minha querida. Os filhos crescem, fazem a vida deles. Mas nós também temos direito à nossa felicidade.

Fiquei a pensar naquilo. Felicidade? Já nem sabia o que era isso. À noite, sentei-me na varanda, a olhar para as luzes da cidade. Lembrei-me do Manuel, das noites em que ficávamos ali os dois, a conversar sobre tudo e sobre nada. Senti uma saudade tão grande que me faltou o ar.

No domingo, resolvi ir à missa. Sentei-me no banco de trás, como sempre fazia. No final, o padre António veio ter comigo. — Maria do Carmo, está tudo bem?

— Está, padre. Só um bocadinho sozinha, mas vai-se andando.

Ele sorriu, compreensivo. — A solidão é uma cruz pesada, mas não precisa carregá-la sozinha. Venha ao grupo de leitura, faz-lhe bem.

Aceitei o convite. No grupo, conheci outras mulheres como eu: mães, avós, viúvas. Cada uma com a sua história de perda, de afastamento, de saudade. Partilhámos lágrimas e risos, e percebi que não era a única a sentir-se assim.

Certa tarde, a Sofia ligou-me. Fiquei surpreendida. — Maria, o João está doente, com febre alta. Podes vir cá ficar com as crianças?

O coração saltou-me no peito. — Claro, Sofia! Já estou a caminho.

Cheguei a casa deles e encontrei o João deitado, pálido. A Sofia estava nervosa, a Matilde chorava porque não encontrava o urso de peluche. Peguei nela ao colo, cantei-lhe a canção que costumava cantar à Inês quando era pequena. Aos poucos, a casa acalmou-se. Fiz sopa para todos, arrumei a cozinha, contei histórias ao Tomás até ele adormecer.

Quando a Sofia voltou da farmácia, olhou para mim com um cansaço que reconheci. — Obrigada, Maria. Não sei o que faria sem ti.

Senti um calor no peito. Talvez ainda houvesse lugar para mim, mesmo que fosse só nas emergências.

Naquela noite, enquanto arrumava os brinquedos espalhados pela sala, ouvi o João chamar-me. — Mãe, desculpa se às vezes não te damos a atenção que mereces. A vida é uma correria…

Abracei-o, sentindo o peso dos anos e das palavras não ditas. — Eu só quero estar convosco, João. Não preciso de mais nada.

Voltei para casa com o coração mais leve. Mas sabia que nada voltaria a ser como antes. Os filhos crescem, criam as suas próprias famílias, e nós ficamos à porta, entre duas casas, entre dois mundos.

Hoje, escrevo esta história sentada à mesma mesa da cozinha, com o cheiro do café a invadir a casa silenciosa. Aprendi a viver com a solidão, a encontrar pequenos momentos de alegria nas conversas com as amigas, nos passeios pelo bairro, nos sorrisos dos netos quando me veem.

Mas ainda me pergunto: será que falhei como mãe? Ou será apenas o ciclo natural da vida? Quantas mães portuguesas sentem este vazio, esta saudade de pertencer? E vocês, já sentiram que o vosso lugar deixou de existir?