Entre Duas Chamas: Quando a Avó Não Pode Mais Tomar Conta dos Netos
— Não posso mais, Marta. Eu já não tenho forças. — A voz da Dona Lurdes tremia, mas os olhos dela estavam firmes, quase desafiadores. Eu olhava para ela, sentada na poltrona da sala, as mãos enrugadas apertando o lenço branco. O relógio da parede marcava seis da tarde, e o cheiro do jantar que eu tinha preparado já se espalhava pela casa. Mas nada disso importava. O mundo parecia ter parado naquele instante.
— Mas mãe, as crianças… Eles adoram ficar consigo. E eu… eu preciso mesmo desta ajuda. — A minha voz saiu mais alta do que queria, misturada com um desespero que eu já não conseguia disfarçar.
O silêncio caiu entre nós, pesado. O meu marido, o Rui, estava na cozinha, fingindo arrumar a loiça, mas eu sabia que ele ouvia cada palavra. As crianças brincavam no quarto, alheias ao que se passava. Eu sentia o coração apertado, como se estivesse a falhar em tudo: como mãe, como nora, como mulher.
Dona Lurdes suspirou. — Marta, eu já fiz muito. Já cuidei do Rui, já cuidei de ti quando precisaste, já cuidei dos meninos. Mas agora… agora preciso de cuidar de mim. O médico disse que tenho de abrandar. — Ela desviou o olhar, e eu vi uma lágrima a brilhar-lhe no canto do olho.
Eu queria gritar, queria chorar, queria abraçá-la e pedir desculpa por tudo. Mas fiquei ali, parada, sem saber o que dizer. O Rui entrou na sala, limpando as mãos ao pano da loiça.
— Mãe, se não podes, não podes. — Disse ele, num tom seco, quase frio. — Mas podias ter avisado antes. Agora como é que a Marta vai fazer com o trabalho?
Dona Lurdes encolheu os ombros, encolhida na poltrona como uma criança assustada. — Eu não sou obrigada…
— Ninguém está a dizer que és obrigada! — Interrompi, sentindo a voz a tremer. — Mas… mas custa. Custa muito. — Senti as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto, quentes e salgadas.
O Rui olhou para mim, depois para a mãe. — Isto não vai resolver-se assim. — Disse, antes de sair da sala, batendo com a porta.
Fiquei sozinha com Dona Lurdes. O silêncio era agora ainda mais pesado. Ela levantou-se devagar, apoiando-se no braço da poltrona.
— Marta, eu amo os meus netos. Mas já não sou nova. Tenho dores, tenho medo de cair, tenho medo de não conseguir reagir se acontecer alguma coisa. — A voz dela era baixa, quase um sussurro. — Não me odeies por isto.
— Eu não te odeio, mãe. Só estou… perdida. — Sentei-me ao lado dela, e ficámos ali, as duas, sem dizer mais nada.
Nessa noite, o jantar foi um desastre. As crianças perguntaram pela avó, e eu não soube o que responder. O Rui mal falou comigo. Fui para a cama com um nó no estômago, a pensar em todas as vezes que tinha contado com a Dona Lurdes para poder trabalhar, para poder respirar, para poder ser mais do que apenas mãe.
Os dias seguintes foram um caos. Liguei para creches, para amas, para vizinhas. Tudo caro, tudo complicado. O Rui começou a chegar mais tarde a casa, e quando chegava, discutíamos. Ele dizia que eu estava a ser injusta com a mãe dele, eu dizia que ele não percebia a pressão que eu sentia.
Uma noite, depois de mais uma discussão, sentei-me na varanda, embrulhada numa manta, a olhar para as luzes da cidade. Senti-me tão sozinha como nunca. Lembrei-me da minha própria mãe, que morreu quando eu era nova, e de como sempre invejei quem tinha avós presentes. Agora, sentia que estava a perder isso para os meus filhos.
No fim de semana, Dona Lurdes veio visitar-nos. Trouxe um bolo de laranja, como sempre fazia. As crianças correram para ela, abraçaram-na, e eu vi nos olhos dela a dor de não poder ser mais a avó de sempre.
— Marta, — disse ela, enquanto arrumávamos a cozinha — eu sei que isto é difícil. Mas tu és forte. Vais conseguir. E eu estou aqui, só não posso é ser como antes.
— Eu sei, mãe. — Respondi, sentindo um misto de gratidão e tristeza.
O Rui entrou na cozinha, olhou para nós e suspirou. — Temos de encontrar uma solução juntos. Não podemos continuar assim.
Sentámo-nos os três à mesa, como uma espécie de conselho de guerra. Falámos de horários, de possibilidades, de pedir ajuda a outros familiares. A certa altura, Dona Lurdes agarrou-me na mão.
— Não te esqueças de cuidar de ti também, Marta. Não deixes que isto te destrua.
Naquela noite, depois de todos irem embora, sentei-me no quarto das crianças, a vê-las dormir. Pensei em tudo o que tinha perdido, mas também em tudo o que ainda tinha. A família, mesmo imperfeita, mesmo cheia de falhas.
Os meses passaram. Arranjámos uma ama, com muito esforço. O Rui começou a ajudar mais em casa. Dona Lurdes vinha buscar as crianças ao fim de semana, para passeios curtos, e eu aprendi a não exigir tanto dela — nem de mim própria.
Mas a ferida ficou. Às vezes, quando vejo outras famílias, com avós sempre presentes, sinto uma pontada de inveja. Outras vezes, sinto orgulho por termos conseguido, apesar de tudo.
Agora, quando olho para trás, pergunto-me: será que fui injusta com a Dona Lurdes? Será que exigimos demasiado dos nossos pais, esquecendo-nos de que também são humanos? E vocês, o que fariam no meu lugar?