Entre Dois Pais: O Caminho Até ao Altar

— Não podes estar a falar a sério, Inês! — gritou a minha mãe, com os olhos marejados de lágrimas. — Depois de tudo o que o Luís fez por ti, vais mesmo considerar o teu pai biológico?

O vestido de noiva pendurado atrás de mim parecia pesar toneladas. Eu olhava para o espelho, mas não via a noiva feliz que sempre imaginei ser. Via uma rapariga dividida, esmagada entre dois mundos que nunca conseguiram coexistir.

O meu nome é Inês Martins. Cresci em Setúbal, numa casa pequena mas cheia de risos — pelo menos até aos meus oito anos, quando o meu pai, António, decidiu ir embora. Lembro-me do som da porta a fechar-se atrás dele, da minha mãe a chorar baixinho na cozinha, e do vazio que ficou. Durante anos, tentei convencê-lo a voltar. Escrevia cartas que nunca respondiam, desenhava-lhe retratos que guardava na gaveta. Mas ele não voltava.

Foi então que apareceu o Luís. Não era perfeito — tinha um bigode ridículo e um sotaque do Norte que me fazia rir — mas foi ele quem me ensinou a andar de bicicleta, quem me levou ao hospital quando parti o braço, quem me ajudou a estudar para os exames de matemática. Aos poucos, fui chamando-lhe “pai” sem perceber.

Agora, vinte anos depois, estava prestes a casar-me com o Miguel, o amor da minha vida. E, como se fosse pouco lidar com as borboletas no estômago e os preparativos do casamento, recebi uma mensagem inesperada: “Inês, gostava muito de te ver antes do teu grande dia. Podemos falar? — Pai”.

O meu coração disparou. Mostrei a mensagem à minha mãe, que ficou branca como a parede. — Ele não tem direito — murmurou ela. — Não depois de tudo.

Mas eu precisava de respostas. Encontrei-me com o meu pai num café discreto à beira-rio. Ele estava mais velho, com rugas profundas e olhos cansados. Ficámos em silêncio durante minutos intermináveis até ele finalmente falar:

— Sei que falhei contigo, Inês. Não há desculpa para o que fiz. Mas nunca deixei de pensar em ti. Gostava de poder compensar… nem que seja só um bocadinho.

As palavras dele eram sinceras, mas também pesadas. Senti raiva e saudade ao mesmo tempo. — Porque agora? — perguntei-lhe. — Porque só agora queres fazer parte da minha vida?

Ele baixou os olhos. — Tive medo. Medo de não ser suficiente. Medo de te magoar ainda mais.

Saí dali com a cabeça à roda. O casamento aproximava-se e eu precisava de decidir: quem me levaria até ao altar? O homem que me deu a vida ou aquele que me ensinou a vivê-la?

Contei tudo ao Miguel naquela noite. Ele ouviu-me em silêncio e depois apertou-me a mão.

— Só tu podes decidir, Inês. Mas lembra-te: este é o teu dia.

Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções e discussões familiares. A minha mãe recusava-se a falar do assunto; o Luís fingia indiferença mas via-se nos olhos dele a dor de quem teme perder um lugar conquistado com tanto esforço.

Uma noite, ouvi-os discutir na cozinha:

— Ela é minha filha tanto quanto tua! — dizia o Luís, voz embargada.
— Mas tu não és o pai dela! — respondeu a minha mãe, exasperada.

Senti-me culpada por causar tanta dor às pessoas que mais amo. Fui ter com o Luís ao jardim naquela noite.

— Desculpa…

Ele sorriu tristemente.

— Não tens de pedir desculpa por quereres conhecer o teu pai, Inês. Só quero que sejas feliz.

No dia seguinte, fui visitar o António outra vez. Levei-lhe uma fotografia minha em criança — uma das poucas onde estamos juntos.

— Gostava que estivesses presente no meu casamento — disse-lhe. — Mas preciso de tempo para perceber como encaixas na minha vida agora.

Ele assentiu em silêncio, lágrimas nos olhos.

Na véspera do casamento, não dormi. Passei horas a olhar para o teto, a pensar em tudo o que perdi e ganhei ao longo dos anos. Lembrei-me das noites em que adormecia ao colo do Luís depois de um pesadelo; das cartas nunca enviadas ao António; dos natais passados entre silêncios constrangedores e sorrisos forçados.

Na manhã do casamento, vesti-me devagar. A minha mãe entrou no quarto sem bater.

— Seja qual for a tua decisão… estou contigo — disse ela, abraçando-me com força.

Quando chegou a hora de entrar na igreja, respirei fundo. O Luís estava à porta, nervoso como nunca o vi.

— Estás pronta? — perguntou ele.

Olhei para trás e vi o António sentado num dos bancos da igreja, sozinho mas com um sorriso tímido nos lábios.

— Luís… — comecei eu, com a voz trémula — quero muito que sejas tu a levar-me até ao altar. Mas gostava que o meu pai viesse connosco…

O Luís olhou-me nos olhos durante longos segundos. Depois acenou com a cabeça e foi buscar o António.

Caminhámos os três juntos até ao altar: eu no meio dos dois homens que marcaram a minha vida de formas tão diferentes. Senti as mãos deles tremerem nas minhas; senti também um peso enorme a desaparecer dos meus ombros.

Durante toda a cerimónia, vi lágrimas nos olhos da minha mãe e um sorriso orgulhoso no rosto do Miguel. Pela primeira vez em muitos anos, senti-me inteira.

No final da festa, dancei com ambos os meus pais — um momento estranho mas bonito, cheio de silêncios cúmplices e promessas mudas de recomeço.

Hoje olho para trás e pergunto-me: será possível amar dois pais de formas diferentes sem trair nenhum deles? Será família aquilo que escolhemos construir juntos? Gostava de saber como vocês teriam decidido…