Entre Dois Mundos: O Silêncio Que Nos Separa
— Outra vez vais sair com o Tiago? — perguntei, tentando controlar o tremor na voz. O Rui nem levantou os olhos do telemóvel. — Ele só está cá este fim de semana, sabes como é. — Sei, repeti, mas a verdade é que não sabia. Não sabia como era ser prioridade de alguém, não sabia como era sentir-me escolhida. Desde que casei com o Rui, há três anos, que vivo entre dois mundos: o dele, onde tudo gira à volta do Tiago, e o meu, onde tento encaixar os pedaços do que resta de mim.
O Tiago tem 12 anos e vem passar fins de semana alternados connosco. No início, achei que seria fácil. Sempre gostei de crianças e queria muito construir uma família com o Rui. Mas depressa percebi que havia uma barreira invisível entre nós. O Tiago nunca me chamou pelo nome; era sempre “ela” ou “a senhora”. E o Rui, talvez por culpa ou medo de perder o filho, fazia tudo para agradar-lhe. Eu ficava a ver televisão sozinha enquanto eles iam jogar futebol ou comer gelados. Às vezes, nem me perguntavam se queria ir.
Uma noite, depois de mais um jantar em silêncio, explodi:
— Rui, sentes mesmo que esta é a nossa casa? Porque eu sinto-me uma estranha aqui.
Ele olhou-me como se eu tivesse dito algo absurdo.
— Não compliques, Ana. O Tiago já tem tanta coisa para lidar… Não quero que ele sinta que está a mais.
— E eu? Não sentes que eu estou a mais?
Ficou tudo dito ali. Fui dormir para o sofá nessa noite. Chorei baixinho para não acordar ninguém. Lembrei-me da minha mãe a dizer-me para ter paciência, que os filhos vêm sempre em primeiro lugar. Mas e eu? Não merecia também ser amada?
No trabalho, a minha colega Mariana percebeu logo que algo não estava bem.
— Estás tão em baixo… O Rui anda estranho?
— Não é ele… sou eu. Sinto-me invisível na minha própria casa.
Ela apertou-me a mão.
— Já pensaste em falar com ele? Explicar mesmo como te sentes?
— Já tentei… Ele só diz que estou a exagerar.
Os dias passaram e fui-me apagando aos poucos. Comecei a evitar estar em casa quando o Tiago vinha. Ia ao cinema sozinha, passeava pela cidade até tarde. O Rui não parecia notar. Ou talvez notasse e não quisesse enfrentar.
Um sábado à tarde, voltei mais cedo do que o costume. Ouvi risos vindos da sala. O Tiago estava a mostrar ao pai um vídeo no telemóvel. Quando entrei, calaram-se de repente.
— Olá — disse eu, tentando sorrir.
O Tiago nem respondeu. O Rui levantou-se e foi buscar água à cozinha.
Sentei-me no sofá ao lado do miúdo.
— Sabes, Tiago… Eu gostava muito que nos déssemos melhor.
Ele encolheu os ombros sem me olhar.
— Não preciso de mais ninguém — murmurou.
Fiquei ali sentada, a olhar para as mãos. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Porque é que tinha de ser sempre eu a ceder? Porque é que ninguém via o meu esforço?
Nessa noite, escrevi uma carta ao Rui. Disse-lhe tudo: como me sentia sozinha, como precisava dele ao meu lado, como queria construir uma família verdadeira e não apenas viver à margem da vida dele e do filho. Deixei a carta na mesa da cozinha e fui dormir cedo.
No dia seguinte, acordei com o Rui sentado à beira da cama. Tinha os olhos vermelhos.
— Li a tua carta — disse ele baixinho. — Desculpa… Nunca pensei que estivesses assim tão mal.
— Não é só culpa tua — respondi. — Eu também devia ter falado mais cedo. Mas preciso de ti, Rui. Preciso de sentir que faço parte da tua vida.
Ele abraçou-me com força.
— Vamos tentar fazer diferente? Prometo que sim.
As coisas não mudaram de um dia para o outro. O Tiago continuava distante e eu continuava insegura. Mas começámos a fazer pequenas coisas juntos: jantares em família, jogos de tabuleiro ao domingo à tarde. Houve dias em que pensei desistir; outros em que senti esperança.
Um dia, depois de um passeio no parque, o Tiago caiu e magoou-se no joelho. Fui eu quem lhe limpou a ferida e lhe pôs um penso rápido. Pela primeira vez, olhou-me nos olhos e disse “obrigado”. Foi pouco, mas foi um começo.
Hoje olho para trás e vejo como estive perto de me perder ao tentar ser aceite numa família que não escolhi totalmente, mas pela qual lutei com tudo o que tinha. Ainda há silêncios e momentos difíceis, mas aprendi a valorizar-me e a exigir respeito pelo meu lugar nesta casa.
Às vezes pergunto-me: quantas pessoas vivem assim, à margem das suas próprias vidas? Quantas desistem antes de serem vistas? E vocês, já se sentiram invisíveis dentro da vossa própria família?