Entre Dois Mundos: O Silêncio Que Me Separou da Minha Mãe

— Vais mesmo ignorar a chamada dela outra vez? — perguntou Rui, encostado à ombreira da porta, o telemóvel dele a vibrar discretamente na mão.

O número da minha mãe piscava no ecrã. O silêncio entre nós era tão denso que quase me sufocava. Três meses. Três meses sem ouvir a voz dela, sem sentir o cheiro do seu café forte pela manhã, sem as suas críticas disfarçadas de preocupação. Três meses de um vazio que me corroía por dentro.

— Não consigo, Rui. Não depois do que ela disse — respondi, a voz embargada, os olhos fixos na chávena de chá frio à minha frente.

Ele suspirou, aproximou-se e pousou a mão no meu ombro. — Ela é tua mãe, Sofia. Não podes viver assim para sempre.

Mas podia? O que é que se faz quando a pessoa que devia ser o nosso porto seguro se transforma na tempestade?

Tudo começou naquela noite de domingo, quando levei o Rui e a nossa filha, Leonor, a jantar a casa dos meus pais. O jantar corria como tantos outros: o meu pai, António, a falar de futebol, a minha mãe, Teresa, a perguntar se Leonor já estava inscrita no ballet, e eu a tentar manter a paz. Até que, de repente, a minha mãe largou a bomba:

— Não percebo porque é que insistes em trabalhar tanto, Sofia. A Leonor precisa de ti. Não achas que já chega de quereres ser tudo ao mesmo tempo?

O silêncio caiu sobre a mesa. Senti o olhar do Rui, preocupado, e o da minha filha, confusa. Engoli em seco.

— Mãe, eu trabalho porque preciso. E porque gosto. Não é uma questão de escolha fácil.

Ela abanou a cabeça, desaprovando. — No meu tempo, as mães ficavam em casa. Não havia cá estas modernices. Depois admiram-se que os filhos cresçam sem valores.

As palavras dela espetaram-se em mim como agulhas. Senti-me pequena, insuficiente. O jantar terminou em silêncio. No carro, Rui apertou-me a mão, mas eu já estava longe dali, perdida num turbilhão de mágoa e raiva.

Nos dias seguintes, tentei ignorar o assunto, mas as palavras da minha mãe ecoavam na minha cabeça. No trabalho, distraía-me facilmente. Em casa, irritava-me com tudo e todos. Leonor, com apenas seis anos, percebeu que algo não estava bem.

— Mamã, porque é que estás triste?

Abracei-a com força, sentindo-me a pior mãe do mundo. Como podia explicar-lhe que, às vezes, as mães também se magoam?

O Rui tentava ajudar. — Fala com ela, Sofia. Não deixes isto crescer. — Mas eu não conseguia. Cada vez que pegava no telefone, a raiva voltava, misturada com uma tristeza profunda.

O tempo foi passando. O Natal aproximava-se e, com ele, a pressão para resolvermos as coisas. A minha irmã, Mariana, ligou-me:

— Vais mesmo faltar ao jantar de família? A mãe está de rastos, Sofia. — A voz dela soava acusadora, mas também cansada. — Ela não é perfeita, mas é a nossa mãe.

— E eu? Eu não conto? — gritei, surpreendendo-me com a intensidade da minha própria dor.

Mariana suspirou. — Conta, claro que contas. Mas alguém tem de ceder.

Ceder. Sempre fui eu a ceder. Desde pequena, quando a minha mãe me obrigava a usar vestidos cor-de-rosa porque “meninas não usam calças”. Quando me inscreveu na catequese contra a minha vontade. Quando me disse que devia casar cedo, ter filhos cedo, ser “como deve ser”.

Mas eu não fui. Casei tarde, tive Leonor aos trinta e cinco, trabalho numa agência de publicidade onde sou das poucas mulheres numa posição de chefia. E, apesar de tudo, nunca me senti suficiente para ela.

Na véspera de Natal, sentei-me no sofá, a olhar para as luzes da árvore. Leonor dormia no quarto, o Rui lia um livro ao meu lado. O silêncio era confortável, mas dentro de mim havia uma tempestade.

Peguei finalmente no telefone. Escrevi uma mensagem à minha mãe: “Podemos falar?”

A resposta veio quase de imediato: “Claro, filha. Estou à tua espera.”

O caminho até casa dos meus pais pareceu interminável. O Rui insistiu em ir comigo, mas pedi-lhe que ficasse. Precisava de enfrentar isto sozinha.

Quando cheguei, a minha mãe estava sentada à mesa da cozinha, as mãos entrelaçadas, os olhos vermelhos. O meu pai fingia ler o jornal, mas espreitava por cima das páginas.

— Olá, mãe.

Ela levantou-se, hesitante. — Olá, Sofia.

O silêncio era pesado. Sentei-me à frente dela, as mãos a tremer.

— Mãe, magoaste-me muito. Não percebes que faço tudo o que posso? Que tento ser boa mãe, boa profissional, boa filha? — A voz saiu-me trémula, carregada de anos de frustração.

Ela baixou os olhos. — Eu sei, filha. Eu só queria o melhor para ti. Mas às vezes não sei como dizer as coisas.

— Dizes sempre como se eu estivesse errada. Como se nunca fosse suficiente.

Ela chorou. Pela primeira vez, vi a minha mãe frágil, humana. — Tenho medo de te perder, Sofia. De perder a minha filha para uma vida que não entendo.

Abracei-a, as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto. — Não me vais perder. Mas tens de confiar em mim. Deixar-me ser quem sou.

Ficámos assim, abraçadas, durante minutos que pareceram horas. O meu pai limpou discretamente uma lágrima. Pela primeira vez em muito tempo, senti esperança.

Voltámos a falar, devagarinho, reconstruindo a confiança perdida. Não foi fácil. Houve recaídas, discussões, silêncios desconfortáveis. Mas também houve risos, partilhas, momentos de ternura.

Hoje, olho para trás e percebo que as mães também têm medo. Que o amor pode ser imperfeito, mas é amor na mesma.

E tu, já perdoaste alguém que te magoou profundamente? Ou será que, no fundo, todos carregamos feridas que só o tempo pode sarar?