Entre Dois Mundos: O Dia em que o Meu Enteado Bateu à Porta

— Mãe, ele vai mesmo ficar cá? — perguntou a minha filha, Mariana, com os olhos arregalados de medo e curiosidade.

Eu não sabia o que responder. O relógio marcava quase onze da noite quando a campainha tocou e, do outro lado da porta, estava o João — o filho do meu marido, Pedro, fruto do seu primeiro casamento. Trazia uma mochila às costas e um olhar perdido. O Pedro ficou imóvel durante uns segundos, como se não acreditasse no que via. Eu senti o chão fugir-me dos pés.

— Pai… posso ficar aqui? — a voz do João era baixa, quase um sussurro, mas carregada de uma urgência que me gelou o sangue.

O Pedro olhou para mim, procurando apoio ou talvez permissão. Eu só consegui acenar com a cabeça, tentando esconder o turbilhão de emoções que me invadia. O João entrou, pousou a mochila no chão da sala e sentou-se no sofá, sem dizer mais nada.

A Mariana ficou à porta do quarto, meio escondida atrás da ombreira. Tinha apenas oito anos e nunca tinha convivido com o João mais do que em jantares de aniversário ou festas de Natal. Agora, de repente, ele era parte da nossa casa.

Naquela noite quase não dormi. O Pedro ficou horas a conversar com o João na sala. Eu ouvia as vozes abafadas e sentia-me uma intrusa na minha própria casa. A cabeça fervilhava de perguntas: Como é que ia ser agora? Será que ia conseguir gostar dele? E a Mariana? Como é que ela ia reagir?

No dia seguinte, tentei agir normalmente. Preparei o pequeno-almoço para todos, mas o João apareceu já depois de termos acabado. Sentou-se à mesa em silêncio. O Pedro tentou puxar conversa:

— Então, João, queres ir comigo ao supermercado mais logo?

— Não sei… — respondeu ele, sem levantar os olhos.

A Mariana olhava para mim à espera de uma reação. Eu sorri-lhe, mas por dentro sentia-me perdida.

Os dias seguintes foram um teste à minha paciência e ao meu coração. O João era educado, mas distante. Passava horas fechado no quarto de hóspedes, a ouvir música ou a jogar no telemóvel. Às refeições, respondia por monossílabos. O Pedro tentava aproximar-se dele, mas parecia sempre haver um muro invisível entre os dois.

Uma noite, depois de deitar a Mariana, sentei-me com o Pedro na sala.

— Achas que ele vai ficar muito tempo? — perguntei, tentando não soar egoísta.

O Pedro suspirou.

— Não sei… A mãe dele está a passar uma fase complicada. Ele diz que não aguenta mais lá em casa.

— E nós? Estamos preparados para isto?

O Pedro olhou-me nos olhos.

— Não sei… Mas temos de tentar.

As semanas passaram e comecei a perceber que o João carregava uma tristeza antiga. Uma noite ouvi-o chorar baixinho no quarto. Hesitei antes de bater à porta.

— João… está tudo bem?

Ele limpou as lágrimas rapidamente.

— Desculpe… Não queria incomodar.

Sentei-me ao lado dele na cama.

— Não incomodas nada. Queres falar?

Ele abanou a cabeça, mas depois desabou:

— Sinto-me sozinho… Sinto que não pertenço a lado nenhum.

As palavras dele ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. Lembrei-me da minha própria infância, dos meus pais divorciados e das casas onde nunca me senti totalmente em casa. Talvez fosse por isso que me custava tanto aceitar esta nova realidade — tinha medo de repetir os erros do passado.

Comecei a tentar pequenas aproximações: convidei o João para ver um filme connosco ao sábado à noite; pedi-lhe ajuda para montar uma estante nova; fiz o prato favorito dele ao jantar (lasanha). Aos poucos, ele foi baixando as defesas. Um dia até sorriu quando a Mariana lhe pediu ajuda com os trabalhos de casa.

Mas nem tudo eram vitórias. Houve discussões — muitas. A Mariana sentia-se posta de parte e começou a fazer birras por tudo e por nada. Uma vez gritou comigo:

— Agora só ligas ao João! Já não gostas de mim!

Fiquei destroçada. Tentei explicar-lhe que o meu amor por ela não mudava, mas percebi que ela também precisava de tempo para se adaptar.

O Pedro também mudou. Tornou-se mais distante comigo — talvez por culpa ou por medo de me perder. Uma noite discutimos feio:

— Sinto que já não somos uma família! — atirei-lhe à cara.

— E achas que eu não sinto o mesmo? Mas temos de ser adultos! O João precisa de nós!

Chorei sozinha nessa noite. Senti-me injusta, mas também traída pelas circunstâncias. Era suposto ser fácil amar um filho que não era meu? Era suposto fingir que estava tudo bem quando sentia ciúmes da atenção do Pedro ao João?

O tempo foi passando e as feridas foram sarando devagarinho. Um domingo à tarde fomos todos ao parque da cidade. A Mariana correu para os baloiços e o João foi atrás dela. Pela primeira vez vi-os rir juntos. O Pedro apertou-me a mão e eu senti uma ponta de esperança.

Ainda hoje há dias difíceis — dias em que sinto saudades da vida simples que tínhamos antes; dias em que me pergunto se estou à altura deste desafio; dias em que tenho medo de falhar como madrasta e como mãe.

Mas depois lembro-me daquela noite em que o João bateu à porta — perdido, assustado, à procura de um lar — e percebo que todos nós estamos apenas a tentar encontrar o nosso lugar neste mundo confuso das famílias reconstituídas.

Às vezes pergunto-me: será possível amar alguém só porque faz parte da pessoa que amamos? Ou será preciso tempo — e muitos erros — para construir uma nova família?

E vocês? Já passaram por algo assim? Como encontraram o vosso equilíbrio?