Entre Dois Mundos: As Lágrimas do Meu Padrasto à Porta de Casa
— Não me peças isso, Inês! — gritou o meu padrasto, António, com a voz embargada, enquanto as suas mãos calejadas tremiam sobre a mesa de madeira gasta. O cheiro a sopa de couve pairava no ar, mas ninguém tinha apetite. Eu sentia o coração apertado, como se cada palavra que dissesse fosse uma faca a cortar o pouco que restava da nossa ligação.
— Pai, eu só quero o melhor para ti. Não podes continuar aqui sozinho. A casa está a cair aos bocados, e tu… — hesitei, olhando para as suas mãos manchadas pelo tempo e para os olhos fundos, onde ainda brilhava uma teimosia antiga.
Ele virou-se para a janela, fitando o campo que sempre fora o seu mundo. — Aqui vivi com a tua mãe. Aqui plantei cada árvore. Achas que vou morrer num sítio onde ninguém me conhece? — A sua voz era um sussurro, mas cada sílaba pesava toneladas.
A minha filha, Leonor, brincava no tapete com um boneco de trapos. O riso dela parecia deslocado naquele cenário de tensão. Senti-me esmagada entre duas gerações: uma que precisava de mim para crescer, outra que precisava de mim para não desaparecer.
Naquela noite, não dormi. Oiço ainda os passos arrastados do António pelo corredor, o ranger das tábuas velhas, o som da televisão ligada até tarde para afastar o silêncio. Lembro-me de quando era pequena e ele me levava ao rio, ensinava-me a pescar e contava histórias da sua juventude em Trás-os-Montes. Nunca foi um homem de grandes gestos ou palavras doces, mas sempre esteve lá — sobretudo quando a minha mãe morreu e eu fiquei perdida no mundo.
Agora era eu quem tinha de decidir por ele. O médico tinha sido claro: António precisava de cuidados que eu não conseguia dar-lhe sozinha. Trabalho em Lisboa como administrativa; as viagens ao interior são cada vez mais difíceis com uma criança pequena e um emprego exigente. O meu marido, Rui, já me disse várias vezes:
— Inês, não podes carregar o mundo às costas. Ele vai ficar bem num lar. Vais ver que até faz amigos.
Mas como explicar ao Rui que para o António amigos são as árvores do quintal? Que a solidão dele não se cura com bingo ou tardes de televisão partilhada?
Na manhã seguinte, tentei abordar o assunto de novo. Sentei-me ao lado dele na varanda, onde o sol já aquecia as pedras gastas.
— Pai… — comecei, mas ele interrompeu-me.
— Não me chames pai agora. Não depois do que disseste ontem.
As palavras doeram mais do que qualquer bofetada. Senti-me uma traidora. Tentei explicar-lhe que não era abandono, era preocupação. Que não queria vê-lo cair outra vez na cozinha e ficar horas no chão sem ninguém para ajudar. Mas ele só abanava a cabeça.
— Quando a tua mãe morreu, prometi-lhe que ficava nesta casa até ao fim. Não vou quebrar essa promessa agora.
Fiquei sem resposta. Passei os dias seguintes num limbo: no trabalho fingia normalidade, em casa tentava ser mãe presente para a Leonor e mulher compreensiva para o Rui. Mas por dentro sentia-me a afundar.
Uma tarde, recebi uma chamada da vizinha do lado:
— Inês, o teu padrasto caiu outra vez no quintal. Está magoado na perna e não quer ir ao hospital.
Larguei tudo e fui para lá com Leonor ao colo. Quando cheguei, encontrei António sentado numa cadeira de plástico, com sangue seco na canela e os olhos vermelhos de raiva e vergonha.
— Não precisas de vir sempre salvar-me — murmurou ele.
— Preciso sim! — gritei, incapaz de conter as lágrimas. — Porque és família! Porque não consigo dormir sem saber se estás bem!
Nesse momento percebi que ambos estávamos presos: ele à memória da minha mãe e à terra onde construiu a vida; eu à culpa de não conseguir ser tudo para todos.
Os dias seguintes foram um desfile de discussões com o Rui:
— Não podemos continuar assim! A Leonor sente a tua ausência! E eu também! — dizia ele.
— E o António? Queres que o abandone? — respondia eu, já sem forças.
A tensão crescia em casa. Leonor começou a ter pesadelos; acordava a chamar por mim quando eu estava fora. O Rui afastava-se cada vez mais; já nem jantávamos juntos sem discutir.
Uma noite, depois de adormecer Leonor com uma história inventada à pressa, sentei-me sozinha na cozinha e chorei como há muito não chorava. Senti-me egoísta por querer uma solução fácil; senti raiva por não haver soluções fáceis.
No fim-de-semana seguinte, levei António ao lar da vila para ver como era. Ele entrou calado, olhou à volta como quem vê um mundo estranho. Uma senhora idosa sorriu-lhe; ele desviou o olhar.
— Aqui cheira a desespero — murmurou ao meu ouvido.
No carro de regresso a casa, ficou em silêncio durante todo o caminho. Quando chegámos à porta da velha casa, virou-se para mim:
— Se me deixares aqui sozinho outra vez, prometo-te que nunca mais falo contigo.
A ameaça ficou suspensa no ar como uma nuvem negra. Senti-me esmagada pelo peso da escolha: ou sacrificava a minha paz familiar ou traía o homem que me criou como filha.
Os meses passaram assim: viagens constantes entre Lisboa e o interior; discussões com Rui; noites mal dormidas; Leonor cada vez mais ansiosa; António cada vez mais frágil mas irredutível na sua decisão.
Um dia recebi uma chamada do hospital: António tinha tido um AVC ligeiro. Corri para lá com Leonor pela mão. Quando cheguei ao quarto, vi-o ligado às máquinas, tão pequeno naquela cama enorme.
— Desculpa… — sussurrei-lhe ao ouvido enquanto lhe segurava na mão fria.
Ele abriu os olhos devagar e sorriu-me pela primeira vez em meses.
— Só queria ficar em casa… — disse com dificuldade.
Nesse momento percebi que às vezes amar alguém é aceitar as escolhas deles mesmo quando nos magoam. Decidi contratar uma senhora da aldeia para ajudar António em casa; reduzi horas no trabalho; pedi ajuda ao Rui para cuidar da Leonor quando precisava de ir ao interior.
A vida tornou-se um malabarismo constante entre Lisboa e Trás-os-Montes. Nem sempre fui justa com todos; nem sempre consegui estar presente onde era mais precisa. Mas aprendi que não há respostas certas quando se trata de amor e família.
Hoje António já não está cá; partiu numa manhã fria de janeiro, na sua casa, rodeado pelas coisas simples que amava. A Leonor lembra-se dele como o avô das histórias e das maçãs do quintal.
Às vezes pergunto-me se fiz tudo certo. Se podia ter feito diferente. Será possível amar sem nos perdermos pelo caminho? E vocês? Já sentiram este peso nas vossas escolhas familiares?