Entre Dois Lares: O Peso de uma Escolha Impossível
— Não faças isso, Leonor! — gritou a minha irmã, Inês, com os olhos vermelhos de raiva e lágrimas. — O pai nunca te vai perdoar!
O eco da voz dela ainda me persegue, mesmo agora, meses depois daquela noite em que tudo mudou. Sinto o cheiro do café frio na mesa da cozinha, o relógio a marcar as horas num compasso lento, e o peso do silêncio entre mim e a minha mãe, que nunca mais me olhou da mesma forma. O meu nome tornou-se um sussurro amargo entre as paredes da casa onde cresci.
O meu pai, António, sempre foi um homem forte. Trabalhador da construção civil, mãos calejadas, olhar duro mas justo. Depois do AVC, ficou metade do que era: metade do corpo paralisado, metade das palavras presas na garganta. Eu tentei tudo. Faltava ao trabalho para lhe dar banho, alimentá-lo, trocar-lhe as fraldas. A minha mãe já não tinha forças e a Inês só aparecia para criticar.
— Não tens paciência! — dizia ela. — Ele precisa de nós!
Mas onde estava ela quando eu passava noites em claro a ouvir os gemidos dele? Onde estava quando tive de limpar o chão porque ele não conseguiu chegar à casa de banho? Eu gritava por dentro, mas por fora sorria para não assustar o meu pai.
Um dia, depois de mais uma discussão com a Inês, sentei-me no chão da casa de banho e chorei até não ter mais lágrimas. Oiço ainda o som da água a correr e o cheiro do desinfetante misturado ao cheiro da solidão. Foi ali que decidi: não podia continuar assim. Nem por mim, nem por ele.
Procurei lares. Visitei três antes de escolher um em Sintra, com jardim e enfermeiras simpáticas. No dia em que levei o meu pai, ele olhou-me nos olhos e tentou falar. Só saiu um som rouco, mas eu entendi: “Porquê?”. O meu coração partiu-se em mil pedaços.
A família reuniu-se naquela noite. A Inês atirou-me palavras como pedras:
— És egoísta! Só pensas em ti! O pai confiava em ti!
A minha mãe chorava baixinho, sem coragem para me defender ou atacar. O meu irmão mais novo, Miguel, nem apareceu. Desde então, ninguém me liga. Os jantares de domingo acabaram. O grupo de WhatsApp da família está morto.
Fiquei sozinha com o eco das minhas escolhas. Todos os dias visito o meu pai no lar. Levo-lhe bolos que ele já não consegue mastigar e livros que já não consegue ler. Falo-lhe das notícias, conto-lhe histórias antigas. Às vezes ele sorri com os olhos.
Uma tarde, encontrei a Inês à porta do lar. Trazia flores e um olhar cansado.
— Não consigo entrar — confessou ela, a voz trémula. — Tenho medo que ele me odeie.
Ficámos ali paradas, duas irmãs separadas pelo medo e pela culpa. Quis abraçá-la, mas ela afastou-se.
No trabalho, os colegas cochicham quando passo. “Coitada da Leonor”, dizem alguns. Outros acham que fui fria demais. Ninguém entende o peso de ver o próprio pai definhar dia após dia.
À noite, sento-me na varanda do meu apartamento alugado em Lisboa e olho as luzes da cidade. Pergunto-me se fiz a escolha certa ou se fui apenas covarde. A solidão é uma companhia cruel: faz ecoar as vozes dos outros até se tornarem insuportáveis.
Um dia recebi uma mensagem do Miguel:
— Precisas de alguma coisa?
Respondi apenas:
— Só queria que estivéssemos juntos nisto.
Ele nunca respondeu.
O tempo passou e aprendi a viver com o silêncio da família. No Natal fui ao lar com um bolo-rei e um gorro vermelho para o meu pai. Ele sorriu ao ver-me e apertou-me a mão com força surpreendente.
— A Leonor é boa filha — disse uma das enfermeiras ao sair do quarto.
Chorei no corredor vazio.
Às vezes penso em tudo o que perdi: os domingos em família, os risos à mesa, as discussões sobre futebol e política. Penso também no que ganhei: uma consciência pesada mas honesta, a certeza de que fiz o melhor que pude com aquilo que tinha.
O que é ser filha? É sacrificar tudo pelos pais? Ou é saber quando já não conseguimos dar mais? Será que algum dia vou ser perdoada? Ou será que vou carregar este peso para sempre?
E vocês? Já tiveram de escolher entre si próprios e quem amam? Como se vive com uma escolha impossível?