Entre Dois Lares: O Peso das Escolhas e o Eco das Famílias

— Não podes continuar assim, Mariana! — A voz da minha sogra, Dona Lurdes, ecoava pela cozinha, misturando-se com o cheiro do café acabado de fazer. — Ou vendes a casa dos teus pais ou o António e eu vamos embora. Não aguento mais esta indecisão!

Senti o coração apertar-se no peito. O António, meu marido, olhava para o chão, evitando o meu olhar. Os meus filhos, Inês e Tiago, estavam no quarto, provavelmente a ouvir cada palavra. A casa dos meus pais era tudo o que me restava deles. Depois do acidente, aquele espaço tornou-se o meu refúgio, o lugar onde ainda sentia o cheiro da minha mãe e ouvia o riso do meu pai nas paredes.

Mas Dona Lurdes nunca aceitara aquela ligação. Desde que o António e eu casámos, ela insistia que devíamos vender a casa e comprar um apartamento novo, mais perto dela, em Lisboa. “É mais prático, Mariana! Não faz sentido manteres uma casa velha em Sintra só por causa de memórias!”, dizia ela sempre, como se as memórias fossem lixo para deitar fora.

Naquela manhã, porém, a ameaça era real. Senti-me encurralada. O António não dizia nada, mas o silêncio dele era mais doloroso do que qualquer palavra. Senti-me sozinha, como tantas vezes antes.

— Mãe, por favor… — tentei argumentar, mas ela cortou-me a palavra.

— Não me chames mãe! Eu não sou tua mãe, Mariana. A tua família já não está cá. Agora tens de pensar nos teus filhos e no teu marido. Ou vais continuar a viver no passado?

As lágrimas ameaçavam cair, mas engoli-as. Não podia mostrar fraqueza. Fui para o quintal, sentindo o frio da manhã a cortar-me a pele. Olhei para o limoeiro que o meu pai plantara quando eu nasci. Lembrei-me das tardes em que ele me ensinava a podar os ramos, das histórias que contava sobre a infância dele em Trás-os-Montes. Como podia eu vender tudo isso?

O António apareceu atrás de mim, hesitante.

— Mariana… — começou ele, mas não terminou.

— Diz-me, António. Tu queres mesmo vender a casa? — perguntei, sem conseguir esconder o tremor na voz.

Ele suspirou.

— Eu só quero paz, Mariana. A minha mãe não vai parar enquanto não conseguir o que quer. E eu… eu já não aguento mais estas discussões.

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Porque é que ele nunca me defendia? Porque é que era sempre eu a ceder?

Os dias seguintes foram um tormento. Dona Lurdes fazia questão de comentar tudo: o estado das paredes, o cheiro a mofo, o jardim “abandonado”. Cada palavra era uma facada. Os meus filhos começaram a perguntar se íamos mudar de casa. A Inês chorava à noite, dizendo que não queria deixar os amigos nem a escola.

Numa noite, sentei-me na sala com o álbum de fotografias dos meus pais. Passei os dedos pelas imagens desbotadas: o casamento deles, o meu primeiro dia de escola, os natais à volta da lareira. Senti uma saudade tão grande que quase me sufocou.

No dia seguinte, tomei uma decisão. Liguei ao António e pedi-lhe que viesse falar comigo sem a mãe dele.

— António, eu não posso vender esta casa. Não posso apagar tudo o que vivi aqui. Se quiseres ir embora com a tua mãe, eu entendo. Mas eu fico.

Ele ficou em silêncio durante muito tempo. Depois levantou-se e saiu sem dizer nada.

As semanas passaram devagar. Dona Lurdes arrumou as malas e foi para Lisboa, levando o António consigo. Fiquei sozinha com os meus filhos naquela casa grande e fria. Os vizinhos começaram a cochichar: “Coitada da Mariana, ficou sozinha…” Mas eu sentia uma estranha paz.

Comecei a trabalhar mais horas na escola primária onde dava aulas. Os meus filhos ajudavam-me no jardim, plantando flores novas junto ao limoeiro do meu pai. Aos poucos, a casa voltou a encher-se de vida.

O António ligava de vez em quando para falar com as crianças. Nunca falava comigo. A Inês chorava muito; o Tiago fechou-se ainda mais no silêncio dele.

Um dia, recebi uma carta do tribunal: pedido de divórcio. Senti um vazio imenso, mas também um alívio estranho. Pela primeira vez em muitos anos, sentia que estava a viver por mim e pelos meus filhos, não para agradar aos outros.

A vida não ficou mais fácil. O dinheiro era pouco, as contas acumulavam-se e houve noites em que chorei até adormecer. Mas também houve momentos de alegria: os aniversários dos miúdos no quintal, os serões à lareira a contar histórias do avô.

Um domingo à tarde, Dona Lurdes apareceu à porta sem avisar. Trazia um bolo de laranja nas mãos e um olhar cansado.

— Posso entrar? — perguntou ela, com uma voz mais suave do que nunca ouvira.

Sentei-me com ela na cozinha. Durante muito tempo ficámos em silêncio.

— Mariana… — começou ela — Eu perdi o meu filho para Lisboa. Ele está sozinho num apartamento vazio, infeliz. Eu só queria o melhor para ele… e para ti também.

Olhei para ela e vi uma mulher envelhecida pela solidão e pelo orgulho.

— Eu só queria manter viva a memória dos meus pais — respondi baixinho.

Ela assentiu.

— Talvez tenhas razão. Talvez eu tenha sido demasiado dura contigo.

Nesse momento percebi que todos carregamos as nossas dores e medos. Dona Lurdes tinha medo de perder o filho; eu tinha medo de perder as minhas raízes.

Os meses passaram e as feridas começaram a sarar devagarinho. O António voltou a visitar os filhos aos fins de semana. Nunca voltámos a ser uma família como antes, mas aprendemos a respeitar as escolhas uns dos outros.

Hoje olho para o limoeiro do meu pai e penso em tudo o que perdi e ganhei. Pergunto-me se fiz bem em escolher as memórias em vez de uma nova vida com o António. Será que valeu a pena lutar tanto por um passado que já não volta? Ou será que só assim consegui encontrar quem realmente sou?

E vocês? Já tiveram de escolher entre o vosso coração e as expectativas dos outros? O que fariam no meu lugar?