Entre Dois Lares: O Peso da Escolha pelo Meu Pai
— Não acredito que vais mesmo fazer isto, Ana! — gritou a minha irmã, Inês, com os olhos vermelhos de raiva e lágrimas. O eco da sua voz ainda ressoa na minha cabeça, mesmo agora, meses depois daquela noite em que tudo mudou.
Eu estava sentada à mesa da cozinha, com as mãos a tremer em cima do tampo de madeira já gasto. O cheiro do café frio misturava-se com o aroma do pão torrado que ninguém tocou. O meu irmão, Rui, olhava para mim como se eu fosse uma estranha. A minha mãe, calada, fitava o chão, incapaz de me encarar.
— Não temos outra solução, Inês. Eu já não consigo cuidar dele sozinha — tentei explicar, mas a minha voz soava fraca, quase infantil. Senti-me pequena perante o peso do olhar deles.
O meu pai, Manuel, sempre foi o pilar da família. Trabalhador na construção civil durante quarenta anos, criou-nos com sacrifício e orgulho. Mas agora, com Alzheimer avançado, já não reconhecia os próprios filhos. Trocava os nomes, confundia os rostos. Uma vez tentou sair de casa em plena madrugada, convencido de que tinha de ir trabalhar.
Durante meses, tentei conciliar o emprego no hospital com os cuidados ao meu pai. Dormia pouco, comia menos ainda. O corpo começou a ceder: dores nas costas, enxaquecas constantes, crises de ansiedade. Os meus filhos adolescentes começaram a afastar-se de mim; o meu marido já mal falava comigo.
— Se tu não consegues, eu fico com ele — disse Inês, mas sabia que era mentira. Ela vivia em Lisboa, num T1 minúsculo, com dois filhos pequenos e um marido ausente. Rui também não podia: trabalhava por turnos na fábrica de papel e mal via a própria família.
A decisão caiu sobre mim como uma sentença. Marquei a visita ao lar em segredo. O edifício era antigo mas limpo, com um jardim pequeno onde alguns idosos jogavam cartas ao sol. A diretora, Dona Teresa, recebeu-me com um sorriso triste.
— Não se culpe, Ana. Às vezes é o melhor para eles… e para nós — disse-me ela, enquanto me mostrava o quarto onde o meu pai ficaria.
No dia da mudança, o meu pai estava calmo. Não compreendia o que se passava. Segurou-me na mão e sorriu:
— Vamos ao café tomar um galão?
Chorei baixinho no carro durante todo o caminho de regresso a casa.
A partir desse dia, a minha família deixou de falar comigo. O grupo do WhatsApp ficou silencioso; os convites para almoços desapareceram. A minha mãe ligava-me apenas para perguntar se eu tinha pago a mensalidade do lar.
As noites tornaram-se longas e frias. Sentava-me na sala escura e revivia cada momento: as mãos do meu pai nas minhas quando era criança; as histórias que contava ao serão; o cheiro a tabaco do seu casaco velho. Agora estava sozinho num quarto estranho, rodeado de desconhecidos.
Comecei a visitar o meu pai todos os domingos. Levava-lhe bolos de arroz e fotografias antigas. Às vezes sorria; outras vezes olhava para mim sem me reconhecer.
— A menina é muito simpática — disse-me uma vez. O coração partiu-se-me em mil pedaços.
No lar conheci outras filhas como eu: Maria José, que vinha todos os dias ver a mãe; Helena, que chorava no carro antes de entrar; António, que nunca vinha porque não aguentava ver o pai assim. Partilhávamos silêncios e olhares cúmplices no corredor.
Certa tarde, encontrei Inês à porta do lar. Trazia flores nas mãos e olhos inchados.
— Vim vê-lo… — murmurou sem me olhar nos olhos.
Sentámo-nos juntas no banco do jardim enquanto o nosso pai dormia lá dentro.
— Não te consigo perdoar — disse ela de repente. — Mas também não consigo fazer melhor.
Ficámos ali caladas muito tempo. O vento trazia o cheiro das magnólias e o som distante das crianças a brincar no parque ao lado.
Os meses passaram devagar. O meu pai foi perdendo forças; deixou de andar, depois de falar. No último Natal, levei-lhe um cachecol azul que ele usava sempre quando íamos à praia em Vila do Conde.
— Está frio hoje? — perguntou-me baixinho.
— Está sim, pai — respondi, tentando sorrir.
Na noite em que ele partiu, recebi uma chamada do lar às três da manhã. Corri até lá sozinha; sentei-me ao lado dele até ao último suspiro. Segurei-lhe a mão como ele tantas vezes segurou a minha.
No funeral, a família reuniu-se finalmente. As palavras eram poucas; os olhares diziam tudo. Senti o peso do julgamento deles como uma pedra no peito.
Depois disso, voltei para casa vazia e silenciosa. Os meus filhos abraçaram-me pela primeira vez em meses; o meu marido chorou comigo na cozinha.
Agora passo as noites a pensar: teria sido diferente se tivéssemos sido mais unidos? Se tivéssemos partilhado o fardo em vez de apontar dedos? Será que algum dia vou conseguir perdoar-me por ter escolhido o que achei ser melhor para ele… mesmo que ninguém mais entenda?
E vocês? O que fariam no meu lugar? Conseguiriam carregar este peso sem se perderem pelo caminho?