Entre Dois Fogueiros: O Meu Nome é Mariana e Esta é a História da Minha Sogra

— Mariana, não podes continuar a fazer de conta que ela não existe! — gritou o João, com os olhos vermelhos de raiva e cansaço.

Eu estava sentada à mesa da cozinha, as mãos a tremerem em cima do pano de linho que herdei da minha mãe. O cheiro do café frio misturava-se com o perfume antigo das flores de laranjeira que Dona Lurdes deixara na sala. Não respondi. O silêncio entre nós era tão pesado que quase me sufocava.

— Ela perdeu o pai ontem, Mariana! — insistiu ele, batendo com a mão na mesa. — E tu nem foste ao velório.

As palavras dele eram facas. Eu sabia que tinha razão, mas não conseguia esquecer todos os anos em que Dona Lurdes me olhou de cima, criticou a minha forma de criar os filhos, de cozinhar, até de respirar. Sempre senti que nunca fui suficiente para ela, nunca fui a nora perfeita que sonhou para o filho único.

Mas agora, ao ver o João assim, tão despedaçado, comecei a perguntar-me se não teria sido eu a construir este muro entre nós.

Naquela noite, não dormi. Ouvia os passos do João no corredor, o ranger da cama dele quando se virava. A casa parecia demasiado grande para tanta mágoa. Lembrei-me do dia em que nos casámos, há vinte anos. Dona Lurdes apareceu de preto, como se fosse um funeral. Disse-me ao ouvido: “O João sempre foi meu. Não te iludas.” Nunca esqueci aquelas palavras.

Ao amanhecer, decidi ir à casa dela. O caminho parecia mais longo do que nunca. As ruas de Lisboa estavam húmidas e cinzentas, como se partilhassem da minha tristeza. Quando bati à porta, ouvi passos arrastados e depois o rosto dela apareceu, envelhecido de um dia para o outro.

— Mariana? — disse ela, surpresa.

— Posso entrar?

Ela hesitou, mas abriu a porta. A casa cheirava a roupa lavada e a tristeza. Sentei-me na sala onde tantas vezes me senti uma intrusa. Ela ficou de pé, sem saber o que fazer com as mãos.

— Sinto muito pelo seu marido — murmurei.

Ela olhou para mim com olhos marejados.

— Obrigada… — respondeu, quase num sussurro.

O silêncio instalou-se outra vez. Eu queria pedir desculpa por tudo: pelas vezes que virei a cara, pelas festas de Natal em que inventei desculpas para não ir, pelos netos que quase não conheciam a avó. Mas as palavras não saíam.

— O João está muito em baixo — disse eu finalmente.

Ela assentiu.

— Ele sempre foi sensível… — murmurou. — Como o pai.

Ficámos ali sentadas, duas mulheres unidas pela dor e pela solidão. Pela primeira vez vi Dona Lurdes como uma pessoa frágil, não como uma inimiga.

Nos dias seguintes comecei a visitá-la mais vezes. Levava-lhe sopa, ajudava-a a arrumar as roupas do marido falecido. Aos poucos fomos falando mais: das saudades, dos medos, das mágoas antigas.

Uma tarde, enquanto dobrávamos lençóis no quarto dela, Dona Lurdes parou e olhou-me nos olhos.

— Sabes, Mariana… Sempre tive medo de perder o João. Quando ele casou contigo senti que estava a ser substituída. Fui injusta contigo muitas vezes… — confessou ela, com lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto.

Senti um nó na garganta.

— Eu também errei — admiti. — Nunca tentei perceber o seu lado. Afastei-o de si porque tinha medo de perder o meu lugar na vida dele.

Abraçámo-nos ali mesmo, entre lençóis e lágrimas antigas. Pela primeira vez em vinte anos senti-me parte daquela família.

Mas a paz foi breve.

Numa noite chuvosa, o João chegou tarde a casa. Trazia uma expressão estranha, distante.

— O que se passa? — perguntei.

Ele hesitou antes de falar:

— A mãe quer vender a casa e vir morar connosco.

O chão fugiu-me dos pés. A ideia de partilhar o nosso espaço com ela parecia impossível. O medo antigo voltou: medo de ser julgada, de perder o pouco que tinha conquistado.

— Não podemos falar disso amanhã? — pedi, sentindo as lágrimas a quererem sair.

Mas ele insistiu:

— Mariana, ela está sozinha! Não tem mais ninguém além de nós!

Discutimos até tarde. Acusámo-nos mutuamente de egoísmo, de falta de compreensão. Os filhos ouviram tudo do quarto e no dia seguinte estavam calados à mesa do pequeno-almoço.

Durante semanas vivi num turbilhão de emoções: culpa por não querer acolher Dona Lurdes; raiva por sentir que ninguém via o meu lado; medo de perder o João para sempre.

Acabei por ceder. Dona Lurdes mudou-se para nossa casa numa manhã fria de fevereiro. Os primeiros dias foram um inferno: discussões sobre horários das refeições, sobre quem mandava na cozinha, sobre os netos passarem tempo demais no telemóvel.

Uma noite ouvi-a chorar no quarto dela. Entrei sem bater e encontrei-a sentada na cama com uma fotografia do marido nas mãos.

— Sinto tanto a falta dele… — disse ela entre soluços.

Sentei-me ao lado dela e ficámos ali em silêncio. Pela primeira vez percebi que o sofrimento dela era maior do que qualquer orgulho ou mágoa antiga.

Com o tempo fomos encontrando um equilíbrio frágil: dividíamos tarefas da casa; às vezes ríamos juntas das novelas; outras vezes discutíamos por coisas pequenas mas já sem rancor acumulado.

O João parecia mais leve e os filhos começaram finalmente a chamar-lhe “avó” sem hesitar.

Mas nem tudo foi fácil. Um dia descobri mensagens no telemóvel do João para outra mulher: uma colega do trabalho chamada Sofia. O mundo desabou outra vez.

Confrontei-o numa noite em que Dona Lurdes estava na sala com os netos:

— Traíste-me?

Ele ficou branco como a cal da parede.

— Não… Quer dizer… Foi só conversa… Eu senti-me sozinho…

A raiva misturou-se com tristeza profunda. Saí de casa sem rumo e acabei por ir ter com Dona Lurdes ao jardim do bairro onde ela costumava passear ao fim da tarde.

Contei-lhe tudo entre lágrimas e soluços. Ela ouviu-me em silêncio e depois disse:

— O João é igual ao pai dele… Sempre fugiu dos problemas em vez de os enfrentar. Mas tu és forte, Mariana. Não deixes que ele te faça sentir menos do que és.

Aquelas palavras deram-me força para voltar para casa e enfrentar o João. Discutimos muito mas decidimos tentar reconstruir a confiança aos poucos.

Hoje olho para trás e vejo quantas vezes julguei mal Dona Lurdes só porque tinha medo de perder o amor do João. Percebo agora que as famílias são feitas de erros e perdão; de mágoas antigas e abraços inesperados; de silêncios pesados e palavras ditas no momento certo.

Às vezes pergunto-me: quantas famílias se destroem porque ninguém tem coragem de dar o primeiro passo? E vocês? Já perdoaram alguém que julgavam impossível perdoar?