Entre Dois Estúdios e Um Sonho Desfeito: O Dia em Que o Meu Mundo Mudou
— Como assim, compraste dois estúdios? — perguntei, a voz a tremer, enquanto olhava para o recibo digital no telemóvel dele. O silêncio dele foi ensurdecedor. O relógio da cozinha marcava quase meia-noite, e eu sentia o coração a bater tão alto que parecia ecoar pelas paredes do nosso pequeno T1 em Benfica.
O João desviou o olhar, mexendo nervosamente na aliança. — Achei que era o melhor para nós… e para a minha mãe. Sabes como ela está sozinha desde que o pai morreu.
Senti o chão fugir-me dos pés. Durante meses, tínhamos sonhado juntos com um T2, com varanda, onde eu pudesse finalmente montar um pequeno ateliê de costura e ele ter espaço para os livros e discos. Falávamos disso ao jantar, fazíamos planos nos passeios de domingo pelo Parque Eduardo VII. E agora… dois estúdios? Um para a mãe dele?
— E eu? — perguntei, quase num sussurro. — Onde fico eu nestes planos?
Ele tentou aproximar-se, mas recuei. — Não é isso, Marta. Eu pensei que…
— Não pensaste nada! — interrompi, sentindo as lágrimas a arderem-me nos olhos. — Decidiste sozinho. Nem sequer me consultaste! Isto não é um casamento, João. Isto é… sei lá o quê!
A minha cabeça rodopiava. Lembrei-me de todas as vezes em que a dona Lurdes, a minha sogra, fazia comentários sobre como o filho devia pensar nela primeiro. “A família é tudo, Marta.” Eu sempre tentei ser compreensiva, mas agora sentia-me traída por ambos.
— A minha mãe não tem ninguém — insistiu ele, a voz embargada. — E tu sabes como ela ficou depois do AVC. Precisa de estar perto de nós.
— Mas tu compraste-lhe um estúdio! E a nós? Vamos viver onde? Separados? Cada um no seu cubículo?
Ele baixou a cabeça. — Pensei que podíamos ficar num dos estúdios até conseguirmos algo melhor…
Ri-me, amarga. — Achas mesmo que dois estúdios são melhores do que um T2? Achas que é isso que eu quero para nós?
O silêncio instalou-se entre nós como uma parede invisível. Sentei-me à mesa da cozinha, as mãos a tremerem tanto que mal conseguia segurar na chávena de chá frio. Lembrei-me da minha mãe a avisar-me: “Cuidado com os homens demasiado ligados às mães.” Sempre achei que era exagero dela, mas agora…
Na manhã seguinte, acordei com os olhos inchados e um peso no peito. O João já tinha saído para o trabalho. No frigorífico, deixou um post-it: “Desculpa. Amo-te.” Senti raiva e tristeza ao mesmo tempo.
No trabalho, mal consegui concentrar-me. A minha colega Andreia percebeu logo que algo não estava bem.
— O que se passa, Marta?
Desabafei tudo entre lágrimas e soluços abafados na casa de banho do escritório.
— Isso não está certo — disse ela, abanando a cabeça. — Ele devia ter falado contigo antes de tomar uma decisão dessas.
— E agora? O que faço? — perguntei-lhe, desesperada.
— Tens de lhe dizer como te sentes. Não podes engolir isso.
Passei o dia a pensar nas palavras dela. Quando cheguei a casa, encontrei o João sentado no sofá, com ar derrotado.
— Precisamos de falar — disse-lhe, sem rodeios.
Ele assentiu em silêncio.
— Sinto-me traída — comecei. — Não é só pelo dinheiro ou pela casa. É por teres decidido sozinho algo tão importante para nós. Eu também perdi o meu pai cedo, João. Também sei o que é sentir-me sozinha. Mas nunca pus a minha mãe à frente de ti.
Ele olhou para mim com olhos marejados.
— Eu só queria ajudar toda a gente…
— Mas esqueceste-te de mim! Esqueceste-te de nós! — gritei, incapaz de conter a dor.
A discussão arrastou-se noite dentro. Vieram à tona mágoas antigas: as vezes em que ele cancelou planos por causa da mãe; as vezes em que eu me calei para evitar discussões; os sonhos adiados por falta de coragem ou dinheiro.
No fim, estávamos ambos exaustos e magoados.
— Não sei se consigo perdoar isto — confessei, com voz trémula.
Ele chorou pela primeira vez desde que o conheço.
Durante dias mal nos falámos. A dona Lurdes ligava constantemente, preocupada com o filho e com os papéis do novo apartamento. Senti-me cada vez mais invisível na minha própria vida.
Uma noite, depois de mais uma discussão fria sobre contas e chaves dos estúdios, fiz as malas e fui dormir a casa da Andreia.
— Tens de pensar em ti agora — disse ela, abraçando-me forte.
Na solidão do quarto dela, olhei para o teto e questionei tudo: será que algum dia fui prioridade para alguém? Será que vale a pena lutar por um casamento onde não sou ouvida?
Os dias passaram devagar. O João mandava mensagens todos os dias: “Desculpa”, “Volta para casa”, “Vamos resolver isto”. Mas eu precisava de tempo para mim.
Fui ver os estúdios sozinha. Eram frios, pequenos, impessoais. Nada ali me fazia sentir em casa. Senti uma tristeza profunda ao imaginar a vida ali: eu num cubículo, ele noutro, a mãe dele sempre presente como sombra entre nós.
Finalmente aceitei encontrar-me com ele num café perto do trabalho.
— Marta… — começou ele, mas levantei a mão para o calar.
— Ouve-me bem: eu amo-te, mas não posso viver assim. Preciso de sentir que faço parte das tuas decisões. Preciso de espaço para sonhar contigo, não apenas sobreviver ao lado da tua mãe.
Ele chorou outra vez. Pediu desculpa mil vezes. Prometeu vender os estúdios e procurar um T2 juntos.
Mas algo dentro de mim tinha mudado. A confiança estava quebrada. O sonho do T2 já não era suficiente para colar os pedaços partidos do nosso casamento.
Hoje escrevo esta história ainda sem saber qual será o final. Estou em casa da Andreia há duas semanas e ainda não decidi se volto ou não para o João.
Pergunto-me todos os dias: quantos sonhos temos de sacrificar até deixarmos de nos reconhecer ao espelho? Será possível reconstruir uma relação quando as fundações estão tão abaladas?
E vocês? Já sentiram que deixaram de ser prioridade na vossa própria vida?