Entre Dois Corações: Uma História de Vida, Esperança e Perda

— Não faças isso, Gabriel! — gritou a minha mãe, com a voz embargada pelas lágrimas. — Tu nem conheces essa rapariga! E se alguma coisa te acontecer?

O eco das palavras dela ainda ressoa na minha cabeça, mesmo passados todos estes anos. Naquele momento, sentado à mesa da cozinha, com o cheiro do café acabado de fazer a pairar no ar e a luz cinzenta de Lisboa a entrar pela janela, senti o peso da decisão que estava prestes a tomar. O meu pai, sempre mais contido, limitou-se a olhar para mim por cima dos óculos, mas vi nos seus olhos o medo disfarçado de resignação.

A verdade é que eu próprio não sabia explicar o porquê. Talvez fosse o artigo que li no jornal sobre a Jéssica — uma jovem de 27 anos, professora primária em Almada, à espera desesperada de um rim compatível. Talvez fosse o vazio que sentia desde que a minha irmã mais nova, Mariana, morrera num acidente de viação dois anos antes. Ou talvez fosse apenas aquela vontade irracional de fazer algo que realmente importasse.

— Mãe, eu já decidi. Se for compatível, vou doar. — A minha voz saiu mais firme do que esperava.

Os dias seguintes foram um turbilhão de exames médicos, entrevistas com psicólogos e conversas intermináveis com amigos e familiares. O meu melhor amigo, Rui, tentou convencer-me a desistir.

— Gabriel, tu és maluco! E se precisares do rim no futuro? E se ela nem te agradecer? — disse ele numa noite chuvosa enquanto bebíamos cerveja num bar em Santos.

— Não faço isto para ser agradecido — respondi. — Faço porque posso.

Quando finalmente recebi a notícia de que era compatível com a Jéssica, senti uma mistura estranha de orgulho e medo. O hospital de Santa Maria tornou-se o meu segundo lar durante semanas. Conheci finalmente a Jéssica numa sala fria e branca, com cheiro a desinfetante e esperança.

Ela era mais baixa do que eu imaginava, com olhos castanhos enormes e uma voz suave que tremia quando me agradeceu.

— Não sei como te agradecer… — murmurou ela, segurando-me as mãos com força.

— Não tens de agradecer. Só quero que fiques bem.

A operação correu bem. Lembro-me de acordar na enfermaria com dores lancinantes e ver o rosto da minha mãe ao meu lado, pálida mas aliviada. Jéssica recuperou depressa. Começámos a falar todos os dias — primeiro por mensagens, depois por telefonemas longos noite dentro. Descobri que ela adorava livros antigos e tinha medo do mar. Ela descobriu que eu era viciado em filmes franceses e detestava domingos à tarde.

A nossa ligação tornou-se cada vez mais forte. Quando finalmente nos encontrámos fora do hospital, num café perto do Jardim da Estrela, senti um nervosismo adolescente. Ela sorriu-me como se partilhássemos um segredo só nosso.

— Sentes-te diferente? — perguntou ela, mexendo no café.

— Sinto-me… mais leve. Como se tivesse feito as pazes com o mundo — respondi.

Começámos a sair juntos: passeios à beira-rio, tardes em museus, jantares improvisados em minha casa. Os meus pais olhavam para nós com uma mistura de desconfiança e esperança. A mãe da Jéssica era mais direta.

— Não penses que agora tens direitos sobre a minha filha só porque lhe deste um rim — disse-me ela num almoço tenso em Almada.

— Dona Teresa, eu só quero vê-la feliz — respondi, sentindo o peso do olhar dela.

Mas nem tudo era fácil. A saúde da Jéssica melhorou, mas as cicatrizes emocionais ficaram. Ela tinha crises de ansiedade e noites em claro. Eu tentava ser o seu porto seguro, mas às vezes sentia-me impotente.

— Gabriel, tu não percebes… Eu devia estar grata por estar viva, mas sinto-me culpada por te ter tirado algo — confessou ela uma noite.

— Não me tiraste nada. Deste-me uma razão para acreditar outra vez — tentei explicar.

O tempo passou e a nossa relação tornou-se mais íntima. Apaixonei-me por ela sem dar conta. Mas o amor nem sempre é suficiente para curar todas as feridas.

Começaram as discussões: pequenas coisas que se transformavam em tempestades. O ciúme dela dos meus amigos; o meu ressentimento por sentir que ela nunca estava verdadeiramente presente. A pressão das famílias aumentava. A minha mãe queria que eu seguisse em frente; a mãe dela achava que eu era uma lembrança constante da doença.

Um dia, depois de uma discussão particularmente violenta sobre um jantar com colegas do trabalho, ela atirou:

— Se calhar nunca devíamos ter passado disto! Tu salvaste-me a vida, mas isso não significa que tenhamos de estar juntos!

Fiquei sem palavras. Saí de casa dela e caminhei durante horas pelas ruas frias de Lisboa. Senti-me vazio outra vez — como se tivesse perdido não só um órgão mas também uma parte da minha alma.

Tentámos reatar algumas vezes, mas algo se tinha partido entre nós. A relação tornou-se tóxica: culpa, ressentimento, saudade do que nunca fomos realmente.

No Natal desse ano, recebi uma mensagem dela:

“Obrigada por tudo. Preciso de me encontrar sozinha.”

Chorei como não chorava desde a morte da Mariana. Passei semanas sem sair do quarto, ignorando chamadas dos amigos e dos pais. Senti raiva dela, de mim próprio, do destino injusto.

Com o tempo, fui aprendendo a viver com a ausência dela — tal como aprendi a viver com um só rim. Voltei ao trabalho na editora onde sempre sonhei trabalhar; reaproximei-me dos meus pais; comecei a correr ao fim da tarde para libertar os fantasmas do passado.

Às vezes vejo-a ao longe na rua ou nas redes sociais: parece feliz, rodeada de amigos novos e projetos. Nunca mais falámos.

Hoje olho para trás e pergunto-me: faria tudo outra vez? Daria um pedaço de mim a alguém sabendo que podia perder tudo? Talvez sim. Porque há gestos que nos definem mais do que qualquer final feliz ou infeliz.

E vocês? Já deram algo de vocês mesmos sem garantias de retorno? Será que vale sempre a pena arriscar pelo outro?