Entre Dívidas e Silêncios: O Preço do Amor de Mãe
— Mãe, preciso mesmo de falar contigo. Agora. — A voz do Rui tremia do outro lado da linha, e eu soube logo que não era uma conversa qualquer. O meu coração apertou-se, como se pressentisse a tempestade que estava para vir.
Deixei as compras no carro e fui para casa, as mãos a suar e a cabeça cheia de perguntas. Quando cheguei, ele já estava sentado à mesa da cozinha, os olhos vermelhos e as mãos a tremer. Rui sempre foi o meu menino — mesmo agora, com trinta anos feitos, barba por fazer e um ar cansado que me partia o coração.
— O que se passa, filho? — perguntei, tentando manter a voz firme.
Ele olhou para mim como quem procura salvação. — Preciso da tua ajuda. Estou metido numa confusão… grande. Tenho uma dívida e não consigo pagar. Se não resolver isto até ao fim do mês, vou perder tudo.
O chão fugiu-me dos pés. Lembrei-me de quando ele era pequeno e vinha ter comigo com os joelhos esfolados, a pedir um beijo para sarar a dor. Agora era diferente. Agora era um homem, mas continuava a pedir-me para o salvar.
— Quanto é? — perguntei, já com medo da resposta.
— Vinte mil euros.
Senti o sangue gelar-me nas veias. Vinte mil euros? Como é que alguém se mete assim? Mas não consegui perguntar. Só consegui pensar que era meu filho, e que eu faria tudo por ele.
— Eu arranjo o dinheiro — disse, sem pensar duas vezes.
No dia seguinte fui ao banco. Sentei-me diante do gerente, o senhor António, que me conhecia desde sempre. Expliquei-lhe que precisava de um crédito pessoal, inventei uma história sobre obras em casa. Ele olhou-me nos olhos, hesitou, mas acabou por aprovar o pedido.
Assinei os papéis com as mãos a tremer. Quando entreguei o dinheiro ao Rui, ele abraçou-me com força. — Obrigado, mãe. Juro que vou mudar.
Durante semanas tentei acreditar nisso. Mas os sinais estavam lá: telefonemas estranhos, noites fora de casa, olhares perdidos. A minha filha mais nova, Inês, começou a desconfiar.
— Mãe, tu não vês? O Rui anda metido em coisas que não são boas. Não podes continuar a protegê-lo assim!
— Ele é teu irmão! — respondi, já exausta de tantas discussões.
— E tu és nossa mãe! Não podes sacrificar tudo por ele!
As palavras dela doíam-me mais do que qualquer dívida. Mas eu não conseguia virar-lhe as costas.
Um dia, quando já não aguentava mais aquela angústia, decidi seguir o Rui. Vi-o entrar num café escuro na Baixa de Lisboa. Esperei do outro lado da rua até ele sair — sozinho, cabisbaixo, a olhar para o telemóvel como se esperasse um milagre.
Nessa noite confrontei-o:
— Rui, diz-me a verdade: onde foi parar o dinheiro?
Ele ficou em silêncio. Depois desabou:
— Mãe… eu perdi tudo no jogo. Tentei recuperar… mas só piorei as coisas.
Senti-me traída. Não só pelo dinheiro — mas pela mentira, pela confiança quebrada. Chorei como há muito não chorava.
— Porque não me disseste? — perguntei entre soluços.
— Tinha vergonha… Não queria desiludir-te.
Durante dias não consegui olhar para ele da mesma forma. A Inês afastou-se ainda mais; dizia que eu estava cega pelo amor de mãe. Os telefonemas dos bancos começaram a chegar: as prestações do crédito pesavam cada vez mais no meu orçamento de reforma.
Comecei a trabalhar como empregada de limpeza em casas de vizinhos para conseguir pagar as contas. O corpo já não aguentava como antes; as costas doíam-me todos os dias e as mãos estavam sempre gretadas dos detergentes baratos.
O Rui prometeu procurar ajuda para o vício do jogo. Inscreveu-se num grupo de apoio no centro de saúde local. Eu quis acreditar que era desta vez… mas cada recaída era uma facada no peito.
A família começou a desmoronar-se à minha volta. O meu marido, Manuel, reformado da Carris, culpava-me por ter facilitado tudo ao Rui.
— Deste-lhe tudo de mão beijada! Agora olha no que deu!
As discussões tornaram-se rotina cá em casa. A Inês quase deixou de nos visitar; dizia que precisava de distância para não enlouquecer também.
Houve noites em que pensei em desistir de tudo — vender a casa, fugir para longe, recomeçar noutro sítio qualquer onde ninguém conhecesse a nossa história. Mas depois olhava para o Rui e via aquele menino assustado dentro do homem perdido.
Um dia recebi uma carta do banco: ameaça de penhora caso não regularizasse as prestações em atraso. Senti-me encurralada como nunca antes na vida.
Fui falar com a assistente social da junta de freguesia. Ela ouviu-me com atenção e sugeriu apoio psicológico para mim também.
— Não pode carregar este peso sozinha, dona Maria.
Comecei a ir às sessões semanais. Lá percebi que amar um filho não significa resolver-lhe todos os problemas — às vezes é preciso deixá-lo cair para aprender a levantar-se sozinho.
O Rui continuou na luta contra o vício. Teve recaídas, sim — mas também teve pequenos progressos: arranjou um trabalho numa loja de informática e começou a pagar pequenas quantias do dinheiro que me devia.
A Inês voltou a aproximar-se aos poucos; trouxe-me flores num domingo e disse:
— Mãe… desculpa se fui dura contigo. Só queria proteger-te.
Abraçámo-nos as duas na cozinha onde tudo começou — agora mais frágeis, mas também mais unidas pela dor partilhada.
Hoje ainda pago as prestações do crédito todos os meses; cada euro custa-me mais do que posso explicar. Mas aprendi que o amor de mãe tem limites — e que às vezes é preciso dizer “não” para salvar quem mais amamos.
Às vezes pergunto-me: teria feito diferente se soubesse toda a verdade desde o início? Ou será que o amor nos cega sempre quando se trata dos nossos filhos? E vocês… até onde iriam por um filho?