Entre Couves e Bifes: O Meu Coração Dividido
— Chega de verdes, mãe! Dá-me um bife ou saio já daqui!
A minha voz ecoou pela cozinha como um trovão. A minha mãe, a Dona Teresa, parou de mexer o tacho e olhou-me com aqueles olhos que sempre souberam ler a minha alma. O cheiro a couve cozida enchia a casa, misturado com o aroma do arroz integral que ela insistia em fazer desde que começou a dieta. O meu pai, o senhor António, fingia ler o jornal, mas eu via-lhe as mãos a tremerem ligeiramente.
— Ricardo, não comeces — suspirou ela, cansada. — Já sabes que o colesterol do teu pai está alto. E tu também não precisas de tanta carne.
Mas eu já não aguentava mais. Desde que a minha irmã, a Mariana, se tornou nutricionista, a nossa casa transformou-se num laboratório de experiências alimentares. Era quinoa ao pequeno-almoço, tofu ao almoço e saladas de beterraba ao jantar. Eu sentia falta dos bifes mal passados da minha avó, das febras grelhadas do meu tio nas festas de família.
— Não é justo! — gritei. — Nem um bife ao fim-de-semana? Nem uma salsicha no pão?
A Mariana entrou na cozinha nesse momento, com o seu ar superior e a bata branca ainda vestida.
— O Ricardo só pensa em carne — disse ela, revirando os olhos. — Sabes quantos anos de vida perdes por cada bife?
— E tu sabes quantos momentos felizes perdes por cada folha de alface? — respondi-lhe, já sem filtro.
O ambiente ficou pesado. O meu pai pousou finalmente o jornal.
— Chega — disse ele, com voz baixa mas firme. — Nesta casa respeita-se quem cozinha. Se não gostas, fazes tu o jantar.
Saí da cozinha a bufar e bati com a porta do meu quarto. Atirei-me para cima da cama e fiquei a olhar para o teto, a ouvir os talheres a tilintar lá em baixo. Senti-me sozinho, incompreendido. O estômago roncava de fome e de raiva.
No dia seguinte, na escola secundária de Benfica, contei tudo ao meu melhor amigo, o João.
— Pá, tens de arranjar um plano — disse ele, enquanto mordia uma sandes de chouriço. — Vens almoçar comigo ao café da Dona Lurdes. Ela faz uns bifes de cebolada que são um espetáculo.
E assim começou o meu ritual secreto. Todos os dias, à hora do almoço, escapava-me para o café da Dona Lurdes. Sentava-me num canto escuro e devorava bifes, costeletas e até rojões. Sentia-me livre ali, longe das regras da minha casa.
Mas os segredos têm pernas curtas. Uma tarde, quando voltava para casa com o hálito ainda marcado pelo alho do bife à portuguesa, dei de caras com a Mariana à porta do prédio.
— Onde é que estiveste? — perguntou ela, desconfiada.
— Na biblioteca — menti.
Ela aproximou-se e farejou o ar como um cão de caça.
— Cheiras a carne — acusou ela. — Traíste-nos!
Fiquei sem palavras. Senti-me apanhado em flagrante. Ela entrou em casa furiosa e contou tudo à minha mãe.
Nessa noite houve reunião familiar na sala. O meu pai estava calado, mas olhava-me com uma mistura de pena e orgulho mal disfarçado.
— Ricardo — começou a minha mãe —, não podes continuar assim. Tens de escolher: ou respeitas as nossas escolhas ou vais ter de começar a cozinhar para ti.
Olhei para eles todos. A Mariana com aquele ar de missão cumprida, a minha mãe magoada e o meu pai dividido. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.
— Eu só quero ser feliz — disse baixinho. — Não posso ser feliz se não posso comer o que gosto?
O silêncio caiu como uma pedra. A Mariana saiu da sala a bufar. A minha mãe foi atrás dela. Fiquei sozinho com o meu pai.
Ele aproximou-se e pousou uma mão pesada no meu ombro.
— Sabes, filho… Quando era novo também me revoltava contra as regras da casa dos meus pais. Mas às vezes temos de ceder um bocadinho para manter a paz.
Olhei para ele e vi nos seus olhos uma tristeza antiga, talvez por todos os bifes que nunca comeu em silêncio para agradar à família.
Naquela noite não jantei. Fiquei no quarto a pensar na vida. No dia seguinte tentei cozinhar um bife às escondidas, mas acabei por queimar tudo e encher a casa de fumo. A Mariana entrou na cozinha aos gritos:
— Vês? Nem sabes cozinhar carne! Por isso é que devias comer o que te damos!
Senti-me humilhado. Saí de casa e fui dar uma volta pelo bairro. Passei pelo talho do senhor Manuel e fiquei a olhar para os bifes expostos na montra como se fossem obras de arte proibidas.
No domingo seguinte houve almoço de família em casa da avó Rosa. Ela sabia dos conflitos lá em casa e decidiu fazer um cozido à portuguesa “com tudo”.
Quando chegou à mesa, vi os olhos da Mariana arregalarem-se ao ver as carnes todas misturadas com os legumes.
— Avó! Isso tem enchidos! — protestou ela.
A avó sorriu com aquele ar sábio:
— Minha filha, na vida há espaço para tudo. O segredo está no equilíbrio.
Comi como se fosse o último almoço da minha vida. Senti-me em casa pela primeira vez em meses.
No regresso a casa, tentei falar com a Mariana.
— Olha… Eu percebo que te preocupes connosco. Mas também tens de perceber que cada um tem os seus gostos e as suas necessidades.
Ela olhou para mim durante uns segundos longos demais e depois encolheu os ombros.
— Talvez tenhas razão… Mas custa-me ver-vos pôr a saúde em risco só por prazer.
Abracei-a sem dizer nada. No fundo sabia que ela só queria o melhor para nós.
Hoje em dia ainda discutimos por causa da comida, mas aprendemos a ceder um pouco: há dias vegetarianos e dias de bife cá em casa. O importante é sentarmo-nos todos à mesa e partilhar mais do que só comida: partilhar histórias, memórias e até discussões.
Às vezes pergunto-me: será que vale mesmo a pena sacrificar tanto para agradar aos outros? Ou será que é possível encontrar um meio-termo sem perder quem somos?