Entre as Sombras do Fado: A Verdade de Inês

— Não é preciso levantar a voz, Inês! — A voz da Maria do Carmo ecoa pela sala de jantar, fria como as paredes de pedra da casa dos meus avós em Sintra. O garfo do meu pai pousa com força no prato, e o silêncio pesa mais do que qualquer palavra. Sinto o olhar da minha irmã, Leonor, a implorar-me para não responder, mas já não consigo engolir mais nada — nem a comida, nem as mentiras.

— Não estou a levantar a voz. Só quero perceber porque é que, de repente, tudo o que era nosso deixou de ser — respondo, tentando controlar o tremor nas mãos. O cheiro do bacalhau com natas mistura-se com a tensão no ar. Desde que a Maria do Carmo entrou na nossa vida, tudo mudou. A minha mãe partiu há dois anos, mas parece que ninguém tem direito ao luto. O meu pai arranjou logo outra mulher, como se o amor fosse um móvel velho que se troca quando já não serve.

— Inês, por favor… — O meu pai tenta apaziguar, mas a voz dele soa cansada, distante. Ele já não é o mesmo homem que me ensinou a andar de bicicleta no jardim do Príncipe Real. Agora é uma sombra, sempre a fugir dos conflitos.

A Maria do Carmo sorri, aquele sorriso falso que me dá vontade de gritar. — Eu só quero ajudar. Só quero que esta família seja feliz.

— Mas não és da família! — A frase sai antes de conseguir travá-la. Sinto o rosto a arder e as lágrimas ameaçam cair. Levanto-me da mesa e fujo para o quarto, batendo com a porta.

Deito-me na cama e olho para o teto. Oiço vozes abafadas na sala, mas já não quero saber. Pego no telemóvel e vejo uma mensagem do Miguel: “Amanhã às 18h no Miradouro?”

Miguel… O meu refúgio e a minha perdição. Conhecemo-nos na faculdade, entre cafés apressados e noites de fado no Bairro Alto. Achei que ele era diferente — sensível, atento, capaz de me entender sem palavras. Mas ultimamente tudo parece um teatro. Ele diz que me ama, mas nunca está presente quando preciso. Sempre ocupado, sempre com desculpas.

No dia seguinte, subo ao Miradouro de Santa Catarina com o coração apertado. O Tejo lá em baixo brilha ao sol poente, mas dentro de mim só há tempestade.

— Estás atrasado — digo assim que ele chega.

Ele sorri, aquele sorriso torto que me conquistou no início. — Desculpa, tive uma reunião…

— Sempre tens reuniões — interrompo. — Sempre tens desculpas.

Ele baixa os olhos. — Inês, eu sei que não tenho sido o melhor namorado…

— Não é isso! — A minha voz falha. — Eu só queria sentir que sou importante para alguém. Que não sou invisível.

Ele tenta tocar-me na mão, mas eu afasto-a. O silêncio entre nós é mais pesado do que qualquer discussão.

— Precisas de tempo? — pergunta ele.

— Preciso de verdade — respondo.

Voltamos para casa em silêncio. Naquela noite, não consigo dormir. A cabeça roda com perguntas sem resposta: Porque é que tudo o que amo me escapa por entre os dedos? Porque é que ninguém fica?

Os dias passam arrastados. Em casa, a Maria do Carmo tenta ser simpática, mas cada gesto dela parece uma provocação. Um dia encontro-a no meu quarto a arrumar as minhas coisas.

— O que estás a fazer? — pergunto, gelada.

Ela sorri. — Só queria ajudar-te a organizar…

— Não preciso da tua ajuda! Sai daqui!

Ela sai sem dizer palavra, mas vejo-lhe nos olhos uma raiva contida. Sinto-me culpada logo depois, mas não consigo evitar. Sinto-me invadida em tudo: no quarto, na família, na vida.

Uma noite ouço os meus pais a discutir na cozinha.

— Ela nunca vai aceitar-me — diz Maria do Carmo.

— Dá-lhe tempo… — responde o meu pai.

— Já passaram dois anos! Eu não sou a tua falecida mulher!

Oiço um copo partir-se e fecho os olhos com força. Sinto-me responsável por toda esta confusão.

No dia seguinte decido sair cedo e vou até à praia da Adraga sozinha. Sento-me na areia fria e deixo as lágrimas caírem finalmente. Lembro-me da minha mãe: das tardes em que fazíamos bolos juntas, das histórias antes de dormir. Sinto tanto a falta dela que dói respirar.

De repente o telemóvel toca: é a Leonor.

— Inês? Onde estás? O pai está preocupado…

— Preciso de estar sozinha — digo apenas.

Ela suspira do outro lado. — Eu também sinto falta dela… Mas não podemos viver sempre no passado.

Desligo sem responder. Fico ali até o sol se pôr, perdida nos meus pensamentos.

Quando volto para casa já é noite cerrada. O meu pai espera-me à porta.

— Podemos falar? — pergunta ele.

Sentamo-nos na sala em silêncio durante minutos intermináveis.

— Sei que tens sofrido muito desde que a mãe morreu — começa ele. — Mas eu também sofri. E preciso de alguém ao meu lado…

Olho para ele e vejo finalmente o homem frágil por trás da fachada dura. Pela primeira vez percebo que ele também está perdido.

— Eu só queria que tudo fosse como antes… — murmuro.

Ele sorri tristemente. — Nunca mais vai ser como antes, filha. Mas podemos tentar ser felizes outra vez.

Naquela noite sonho com a minha mãe. Ela sorri-me e diz: “A vida é feita de recomeços.”

Acordo com uma sensação estranha de paz. Decido falar com a Maria do Carmo. Encontro-a na cozinha a preparar chá.

— Podemos conversar? — pergunto timidamente.

Ela olha-me surpreendida e acena com a cabeça.

— Desculpa por ter sido tão dura contigo… Eu só sinto tanto a falta da minha mãe…

Ela aproxima-se e segura-me nas mãos.

— Eu nunca vou substituir a tua mãe, Inês. Só quero fazer parte desta família à minha maneira.

Abraçamo-nos em silêncio. Pela primeira vez sinto que talvez haja espaço para todos nesta nova vida.

Com o Miguel as coisas acabam por terminar algumas semanas depois. Percebo que estava agarrada à ideia dele como um salva-vidas no meio da tempestade. Mas agora sei: só posso salvar-me a mim própria.

Volto à faculdade com outra energia. Aproximo-me mais da Leonor e do meu pai. Aos poucos vamos reconstruindo uma família diferente, imperfeita mas real.

Às vezes ainda sinto falta da mãe e do amor idealizado pelo Miguel. Mas aprendi que felicidade não é ausência de dor — é saber viver apesar dela.

E vocês? Já sentiram que tiveram de perder tudo para se encontrarem? Será possível ser feliz mesmo quando nada corre como planeámos?