Entre as Ruínas do Meu Próprio Lar: O Preço de Amar Demais

— Não me venhas com desculpas, Miguel! — gritei, sentindo a garganta arder, enquanto as lágrimas ameaçavam cair. — Achas que não percebo o que se passa? Achas que sou cega?

O silêncio dele era mais cruel do que qualquer resposta. O relógio da cozinha marcava quase meia-noite e os miúdos já dormiam há horas. Eu estava ali, de bata vestida e cabelo desgrenhado, a encarar o homem que jurei amar para sempre, mas que agora me parecia um estranho.

Sempre fui a mulher que fazia tudo: acordava cedo para preparar pequenos-almoços, levava o Diogo e a Matilde à escola, trabalhava no supermercado do bairro, voltava para casa para tratar do jantar, da roupa, das contas. Miguel era o meu orgulho. Trabalhava numa empresa de construção civil, chegava tarde, cansado, e eu fazia questão de lhe dar tudo pronto. Era assim que aprendi com a minha mãe: mulher que é mulher cuida da casa e da família.

Mas aquela noite mudou tudo. O telemóvel dele vibrou em cima da mesa. Vi o nome “Carla” no ecrã. Não era a primeira vez. O cheiro diferente na roupa, as desculpas esfarrapadas, as horas extra que nunca se refletiam no ordenado. O meu coração já sabia antes da cabeça aceitar.

— Diz-me a verdade, Miguel. — A minha voz saiu baixa, quase um sussurro. — Há quanto tempo?

Ele suspirou, desviando o olhar. — Não sei… Uns meses.

Senti o chão fugir-me dos pés. Meses? Quantas vezes tinha eu lavado as camisas dele manchadas de perfume barato? Quantas vezes tinha eu ignorado os olhares vazios ao jantar?

— E os miúdos? Já pensaste neles?

Ele encolheu os ombros. — Não sei o que queres que te diga, Sofia. As coisas mudaram.

As coisas mudaram. Como se fosse só isso. Como se o amor fosse um interruptor que se desliga quando nos apetece.

Naquela noite não dormi. Fiquei sentada na sala, a olhar para as fotografias na estante: nós no Algarve, sorridentes; Matilde no seu primeiro dia de escola; Diogo com o dente partido depois de cair da bicicleta. Tudo parecia tão distante, como se pertencesse a outra vida.

No dia seguinte, Miguel saiu cedo sem dizer nada. Preparei o pequeno-almoço para os miúdos em silêncio. Matilde percebeu logo que algo não estava bem.

— Mãe, porque estás triste?

Abracei-a com força, sentindo o cheiro doce do seu cabelo. — Não estou triste, filha. Só estou cansada.

Mentira. Estava destruída.

Durante semanas tentei manter as aparências. No supermercado, as vizinhas perguntavam pelo Miguel e eu sorria, fingindo normalidade. Mas dentro de mim crescia um vazio impossível de preencher.

Uma noite, depois de deitar os miúdos, sentei-me à mesa com a minha irmã, Teresa. Ela olhou-me nos olhos e disse:

— Sofia, tu não tens de aguentar tudo sozinha.

Desatei a chorar como uma criança. Contei-lhe tudo: as traições, as mentiras, o medo de ficar sozinha.

— E agora? O que faço?

Ela apertou-me a mão. — Agora pensas em ti. Pela primeira vez na vida.

Mas como se faz isso quando toda a tua existência foi dedicada aos outros?

Miguel acabou por sair de casa duas semanas depois. Levou uma mala pequena e prometeu visitar os miúdos aos fins-de-semana. No início cumpriu. Depois começou a falhar. “O trabalho está complicado”, dizia ele ao telefone. “A Carla está doente”, “O carro avariou”… Sempre uma desculpa nova.

Os miúdos começaram a perguntar por ele cada vez menos. Matilde chorava à noite, Diogo fechou-se no quarto e deixou de falar comigo durante dias.

No supermercado começaram os boatos. “Coitada da Sofia”, diziam baixinho quando eu passava. “O Miguel arranjou outra…” Senti-me envergonhada, como se a culpa fosse minha por não ter sido suficiente.

A minha mãe foi das poucas pessoas que não me julgou.

— Filha, tu deste tudo por aquela família. Agora tens de te dar a ti própria.

Mas como? Eu nem sabia quem era sem ser “a mulher do Miguel” ou “a mãe do Diogo e da Matilde”.

Comecei a sair para caminhadas sozinha ao fim da tarde. No início sentia-me perdida, mas aos poucos fui aprendendo a ouvir o silêncio e a minha própria respiração. Um dia sentei-me num banco do jardim e chorei tudo o que tinha guardado durante anos.

Foi aí que conheci o Sr. António, um velhote simpático que passeava sempre com um cão rafeiro chamado Bolota.

— Está tudo bem consigo? — perguntou ele num daqueles dias em que eu mal conseguia levantar os olhos do chão.

— Não… Mas vai ficar — respondi, surpreendendo-me com a sinceridade da minha resposta.

Ele sorriu e sentou-se ao meu lado sem dizer mais nada. Às vezes é disso que precisamos: companhia silenciosa.

Com o tempo comecei a falar mais com ele e com outras pessoas do bairro. Descobri que havia vida para além das paredes da minha casa.

No trabalho fui promovida a responsável de caixa. Pela primeira vez senti-me valorizada por algo que era só meu mérito.

Os miúdos também começaram a adaptar-se à nova rotina. Matilde fez uma amiga nova na escola e Diogo voltou a jogar futebol com os colegas.

Um dia Miguel apareceu lá em casa sem avisar. Trazia um ar cansado e olheiras fundas.

— Posso falar contigo?

Assenti em silêncio.

— Enganei-me, Sofia… Sinto falta de casa, dos miúdos… De ti.

Olhei para ele durante longos segundos. O coração bateu mais forte, mas desta vez não era amor: era medo de voltar atrás.

— Miguel… Eu também sinto falta do que tínhamos. Mas não posso esquecer tudo o que aconteceu assim tão facilmente.

Ele baixou a cabeça e saiu sem dizer mais nada.

Naquela noite percebi finalmente: eu não precisava dele para ser feliz.

Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente no espelho. Uma mulher que sofreu, sim, mas que sobreviveu à tempestade e aprendeu a amar-se primeiro.

Pergunto-me muitas vezes: quantas mulheres vivem presas ao medo de ficarem sozinhas? Quantas sacrificam os seus sonhos pelos outros? Será preciso perder tudo para nos encontrarmos?