Entre as Quatro Paredes: O Preço da Solidão e do Dinheiro
— Mãe, não podes estar a falar a sério! — gritou o meu filho Rui, com os olhos vermelhos de raiva e desespero. A minha nora, Andreia, segurava a pequena Leonor ao colo, tentando acalmá-la enquanto as lágrimas lhe escorriam pelo rosto.
Eu estava sentada na ponta da velha mesa de madeira da cozinha, as mãos trémulas agarradas à chávena de chá frio. O cheiro do café da manhã ainda pairava no ar, misturado com o perfume barato da Andreia e o suor nervoso do Rui. O relógio da parede marcava quase meio-dia, mas o tempo parecia suspenso naquele instante.
— Não tenho outra escolha, Rui. A reforma não chega para tudo. O senhorio quer aumentar o condomínio, a luz subiu outra vez… — tentei explicar, mas a minha voz soava fraca, quase inaudível.
Rui bateu com o punho na mesa, fazendo saltar migalhas de pão. — E nós? Onde é que vamos ficar? Achas justo pôr-nos na rua só porque queres ganhar mais uns trocos?
A verdade é que nunca pensei chegar a este ponto. Quando o António morreu, há sete anos, herdei este pequeno apartamento em Benfica. Dois quartos, uma sala minúscula e uma varanda onde mal cabem dois vasos de manjerico. Era pouco, mas era meu. Durante anos vivi sozinha, sobrevivendo com a pensão mínima e uns trocos que fazia a costurar para as vizinhas.
Mas os tempos mudaram. As contas começaram a acumular-se. O preço do gás subiu, o supermercado parecia engolir metade da minha reforma todos os meses. E depois veio a doença: uma artrose no joelho esquerdo que me obrigou a gastar o que não tinha em médicos e remédios.
Quando o Rui perdeu o emprego na construção civil, há seis meses, não hesitei em recebê-los cá em casa. “É só até arranjares trabalho”, disse-lhe na altura. Mas os meses passaram e nada mudou. Andreia arranjou um part-time num café, mas mal dava para pagar as fraldas da Leonor. O apartamento encheu-se de vozes, brinquedos espalhados e discussões baixas à noite.
No início até gostei da companhia. Senti-me útil outra vez — fazia sopa para todos, contava histórias à Leonor antes de dormir. Mas rapidamente percebi que três adultos e uma criança num T2 era receita para desastre. As discussões começaram por coisas pequenas: quem lavava a loiça, quem ocupava mais espaço no frigorífico, quem deixava as luzes acesas.
Uma noite ouvi Rui e Andreia a discutir no corredor:
— A tua mãe trata-me como se eu fosse uma intrusa! — sussurrou ela.
— Ela está cansada, Andreia… — respondeu ele, mas percebi pelo tom que já não tinha forças para defender ninguém.
Foi então que ouvi falar de uma vizinha que alugava quartos a estudantes da Faculdade de Letras ali perto. “Pagam bem”, disse-me ela no elevador. “E são limpos, não dão trabalho nenhum.” Fiquei com aquilo na cabeça durante dias. Fiz contas à vida: se alugasse um dos quartos por 400 euros ao mês, podia finalmente respirar sem medo das contas.
Mas como dizer isso ao meu filho? Como explicar que precisava daquele dinheiro mais do que precisava deles ali comigo?
A resposta veio numa manhã chuvosa de março. A Leonor estava doente, tossia sem parar e Andreia chorava baixinho na casa de banho porque não tinha dinheiro para comprar xarope. Senti-me impotente — uma avó inútil num mundo demasiado caro para velhos pobres como eu.
Nessa noite escrevi tudo num papel: quanto gastava por mês, quanto recebia da reforma, quanto podia ganhar se alugasse o quarto. O número final era claro: ou alugava o quarto ou acabávamos todos na rua.
No dia seguinte sentei-me com Rui e Andreia à mesa.
— Preciso falar convosco — comecei, sentindo um nó na garganta. — Não posso continuar assim. Vou ter de alugar um dos quartos.
O silêncio foi ensurdecedor. Rui olhou-me como se eu fosse uma estranha.
— Estás a escolher dinheiro em vez da família? — perguntou ele.
Não respondi. Não havia resposta certa.
As semanas seguintes foram um inferno. Rui procurou casa desesperadamente; Andreia ligou à mãe em Setúbal para pedir abrigo temporário. Eu sentia-me cada vez mais pequena dentro das minhas próprias paredes.
No dia em que saíram, Leonor deu-me um desenho: “Avó Maria” escrito com letras tortas e um coração vermelho. Chorei sozinha durante horas depois de fechar a porta.
O quarto ficou vazio durante dias até que apareceu a Inês, uma estudante de Évora que vinha estudar Psicologia em Lisboa. Pagou adiantado dois meses e trouxe livros e plantas para o quarto. Era educada, silenciosa — quase não dava por ela em casa.
Mas o silêncio pesava mais do que nunca. As noites eram longas; os jantares solitários tornaram-se rotina. O dinheiro ajudava nas contas, mas não pagava o vazio que ficou depois do Rui e da Leonor partirem.
Às vezes ouvia vozes no corredor e pensava que eram eles a chegar do trabalho ou da escola. Mas era só a Inês ao telefone com os pais ou os vizinhos a discutir no andar de cima.
Passaram-se meses sem notícias do Rui. Tentei ligar-lhe várias vezes; ele atendia mas falava pouco. “Estamos bem, mãe”, dizia sempre antes de desligar apressado.
No Natal comprei um presente para a Leonor — um livro de histórias — e fui até Setúbal tentar vê-los. Andreia abriu-me a porta com um sorriso forçado; Leonor correu para mim mas parecia diferente, mais distante.
Sentámo-nos à mesa como estranhos. Rui evitava olhar-me nos olhos; Andreia falava sobre o novo emprego num supermercado local; Leonor brincava sozinha no tapete.
Quando me despedi, Rui acompanhou-me até à porta:
— Não te preocupes connosco — disse ele sem emoção. — Faz o que tens de fazer.
Voltei para Lisboa com o coração apertado e uma pergunta martelando na cabeça: teria feito o certo?
Hoje continuo sozinha no mesmo apartamento. A Inês já terminou o curso e foi-se embora; agora tenho outro estudante no quarto vago. As contas estão pagas, mas as paredes parecem mais frias do que nunca.
Às vezes olho para o desenho da Leonor colado no frigorífico e pergunto-me: valeu mesmo a pena? Quantos de nós somos obrigados a escolher entre sobreviver e amar? Se fosse consigo… faria diferente?