Entre as Paredes do Silêncio: O Sonho de um Lar Quebrado
— Não podes estar a falar a sério, Inês! — gritou a minha mãe, com a voz embargada, enquanto eu segurava o teste de gravidez nas mãos trémulas. O cheiro do café queimado misturava-se com o cheiro ácido do medo no ar da cozinha. O meu pai, sentado à mesa, olhava para mim como se eu fosse uma estranha. — Aos dezoito anos? E agora? O que é que vais fazer da tua vida?
A verdade é que nem eu sabia. O Miguel, o meu namorado desde o 10º ano, estava ao meu lado, mas parecia mais um miúdo assustado do que o homem com quem eu sonhava construir uma família. Tínhamos feito planos — planos ingénuos, admito agora — de arranjar um T2 em Almada, perto da escola onde ele trabalhava como assistente operacional. Eu queria estudar enfermagem, mas tudo isso parecia tão distante naquele momento.
— Vamos dar a volta por cima, Inês — sussurrou ele, tentando segurar-me a mão por baixo da mesa. Mas a minha mãe afastou-se dele como se fosse culpado de todos os males do mundo.
Os dias seguintes foram um turbilhão de discussões. A minha irmã mais nova, Mariana, chorava no quarto ao lado porque não queria que eu saísse de casa. O meu pai falava em vergonha, em desilusão. A minha mãe oscilava entre o silêncio frio e gritos que ecoavam pela casa toda: — Não vais conseguir! Vais acabar como a tua tia Rosa, sozinha com dois filhos e sem futuro!
O Miguel tentava ser forte, mas via-se que estava perdido. Começou a fazer mais turnos no supermercado para juntar dinheiro. Eu sentia-me cada vez mais sozinha, com o corpo a mudar e a cabeça cheia de dúvidas. As amigas afastaram-se; algumas nem sequer responderam às mensagens quando souberam da gravidez. Só a Joana, a minha melhor amiga desde sempre, ficou ao meu lado: — Vais conseguir, Inês. Eu ajudo-te no que for preciso.
Quando finalmente conseguimos arrendar um pequeno apartamento — minúsculo, com humidade nas paredes e vizinhos barulhentos — achei que era o início de uma nova vida. Mas logo percebi que os sonhos não pagam contas nem aquecem quartos gelados no inverno. O Miguel chegava tarde e cansado; eu passava os dias sozinha, a sentir o bebé mexer na barriga e a imaginar como seria o nosso futuro.
As discussões começaram cedo. Ele queria sair com os amigos ao sábado à noite; eu queria que ele ficasse comigo. Ele dizia que precisava de descontrair; eu sentia-me abandonada. Uma noite, depois de uma discussão mais acesa, ele saiu porta fora e só voltou de madrugada. Fiquei sentada no sofá, abraçada à barriga, a chorar baixinho para não acordar os vizinhos.
O nascimento do Tomás foi um misto de alegria e terror. O Miguel chorou quando o viu pela primeira vez, mas logo voltou à rotina de sempre: trabalho, cansaço, distância. Eu sentia-me invisível — uma sombra dentro daquela casa fria. A minha mãe vinha visitar-nos de vez em quando, mas nunca sem antes lançar olhares de reprovação ao Miguel.
— Isto não é vida para ninguém — dizia ela baixinho enquanto me ajudava a dar banho ao Tomás. — Ainda vais acabar sozinha.
E talvez ela tivesse razão. Os meses passaram e o Miguel foi-se afastando cada vez mais. Comecei a desconfiar das mensagens no telemóvel, das desculpas esfarrapadas para chegar tarde. Uma noite, depois de uma discussão feia sobre dinheiro (o senhorio tinha aumentado a renda e estávamos quase sem nada para comer), ele atirou-me à cara:
— Eu não pedi isto! Não pedi para ser pai tão cedo! Tu é que estragaste tudo!
As palavras dele cortaram-me como facas. Senti-me culpada por tudo: pela gravidez, pela casa miserável, pelo cansaço dele… até pelo choro do Tomás durante a noite.
Foi nessa altura que comecei a pensar em voltar para casa dos meus pais. Mas sabia que isso seria admitir derrota — e eu não queria dar-lhes razão. Aguentei mais uns meses até ao dia em que encontrei uma mensagem no telemóvel do Miguel: “Logo passo aí. Sinto saudades tuas.” O nome era de uma colega do supermercado.
Confrontei-o naquela noite. Ele não negou. Disse apenas:
— Preciso de espaço, Inês. Preciso de pensar na minha vida.
Arrumei as minhas coisas em silêncio enquanto ele saía pela porta sem olhar para trás. Liguei à minha mãe:
— Mãe… posso voltar para casa?
O regresso foi amargo. O meu pai mal me dirigia a palavra; a Mariana olhava para mim com pena; a minha mãe tentava ajudar mas não sabia como lidar com o meu silêncio. Sentia-me um fardo.
Comecei a trabalhar numa pastelaria perto de casa para ajudar nas despesas e tentar juntar dinheiro para voltar a sair dali um dia. O Tomás era o meu único motivo para sorrir — mesmo quando tudo parecia perdido.
O Miguel aparecia de vez em quando para ver o filho, mas nunca ficava muito tempo. Trazia brinquedos caros e promessas vazias: — Um dia vamos ter uma casa bonita só nossa…
Aprendi a não acreditar mais nessas palavras.
Hoje olho para trás e vejo uma rapariga ingénua que acreditava em finais felizes só porque sim. A vida ensinou-me que os sonhos são importantes, mas é preciso lutar por eles todos os dias — mesmo quando tudo parece desmoronar.
Às vezes pergunto-me: quantas raparigas como eu existem por aí? Quantas viram os seus sonhos desmoronar entre as paredes frias de uma casa alugada? Será que algum dia vou conseguir construir um lar verdadeiro para mim e para o Tomás? E vocês… já sentiram que tiveram de crescer depressa demais?