Entre as Paredes do Silêncio: O Preço do Amor de Mãe
— Mãe, por favor, não faças isto outra vez. — A voz do Miguel, o meu filho, ecoou pelo corredor antes mesmo de eu conseguir pousar o saco com o pão fresco e os bolos que tinha acabado de comprar na padaria da Dona Amélia. Eram sete da manhã, e eu já estava de pé desde as cinco, a preparar tudo para que ele, a Ana e os meus netos tivessem um pequeno-almoço digno de domingo.
Senti o peito apertar-se. O Miguel nunca me falava assim. Ou melhor, nunca me falava assim antes de casar com a Ana. Desde que ela entrou para a família, tudo mudou. Antes, ele ligava-me todos os dias, pedia conselhos sobre tudo, até sobre como lavar uma camisa branca. Agora, mal me atende o telefone.
— Só queria deixar-vos o pequeno-almoço. — Tentei sorrir, mas a voz saiu-me trémula. — Trouxe pão quente e os bolos que o Tomás gosta…
O Miguel olhou para trás, como se tivesse medo que a Ana aparecesse e o visse a falar comigo. — Mãe, não podes aparecer aqui assim, sem avisar. A Ana não gosta…
A Ana não gosta. Era sempre isso. A Ana não gosta disto, a Ana não gosta daquilo. Mas quem era eu? A mãe dele! Fui eu que o criei sozinha durante anos, depois do pai dele ter morrido naquele acidente na estrada nacional. Fui eu que abdiquei de tudo — férias, saídas com amigas, até de comprar roupa nova — para que ele tivesse tudo o que precisava.
Lembro-me de quando ele era pequeno e tinha medo do escuro. Dormia agarrado à minha camisola, porque dizia que cheirava a casa. E agora? Agora nem sequer me deixa entrar em casa dele.
— Miguel, por favor… — Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos. — Só queria ver os meninos.
Ele suspirou, visivelmente desconfortável. — Eles ainda estão a dormir. E a Ana está cansada… Tivemos uma noite difícil com o bebé.
— Eu podia ajudar! — interrompi, quase suplicando. — Sei dar banho ao bebé, posso fazer o almoço…
— Não precisamos, mãe. Vai descansar para casa.
Fiquei ali parada à porta, com o saco nas mãos, enquanto ele fechava a porta devagarinho. Ouvi o trinco rodar. Fiquei a olhar para aquela porta branca durante uns segundos eternos. Senti-me uma estranha na vida do meu próprio filho.
Desci as escadas devagarinho, tentando não chorar à frente dos vizinhos. O senhor António estava a regar as plantas no rés-do-chão e acenou-me com um sorriso triste.
— Está tudo bem, dona Rosa?
Assenti com a cabeça, mas não consegui responder. O nó na garganta era demasiado grande.
Cheguei a casa e sentei-me à mesa da cozinha. O relógio marcava sete e meia da manhã e eu já sentia o dia perdido. Olhei para as fotografias na parede: o Miguel em pequeno, com os joelhos esfolados; o Miguel no primeiro dia de escola; o Miguel no casamento com a Ana — eu ao lado deles, sorridente mas já com aquele aperto no peito que nunca mais me largou.
O telefone tocou. Era a minha irmã, a Teresa.
— Então, Rosa? Já foste levar o pequeno-almoço aos meninos?
— Fui… mas não quiseram.
— Outra vez? — A Teresa suspirou do outro lado da linha. — Tu dás-lhes tudo e eles nem agradecem.
— Não é culpa do Miguel… É ela. Ela não gosta de mim.
— Não digas isso! — tentou animar-me. — Talvez estejam só cansados…
Mas eu sabia que não era cansaço. Era rejeição. Era como se todo o amor que dei ao meu filho tivesse sido em vão.
Lembrei-me de quando conheci a Ana pela primeira vez. Ela parecia simpática, mas sempre distante. Nunca me tratou mal diretamente, mas também nunca fez questão de se aproximar. Quando engravidou do primeiro filho, pensei que talvez as coisas mudassem — que talvez precisasse mais de mim e me deixasse entrar na vida deles. Mas foi ao contrário: afastou-se ainda mais.
Comecei a reparar em pequenas coisas: já não me pediam para ficar com os meninos quando precisavam de sair; deixaram de me convidar para almoços ao domingo; até no Natal começaram a passar mais tempo com os pais dela do que comigo.
Uma vez ouvi-a ao telefone com uma amiga:
— A mãe do Miguel é demasiado presente… Não nos deixa respirar.
Demasiado presente? Eu só queria ajudar! Só queria sentir-me útil! Será que é errado querer fazer parte da vida dos meus netos?
Os dias foram passando e fui-me fechando cada vez mais em casa. As amigas começaram a notar:
— Rosa, tens de sair! Vem ao café connosco!
Mas eu não tinha vontade. Sentia-me vazia.
Até que um dia recebi uma mensagem do Miguel:
“Mãe, precisamos conversar.”
O coração disparou-me no peito. Será que finalmente ia explicar-me o que se passava?
Encontrámo-nos num café discreto perto da minha casa. Ele chegou atrasado e parecia nervoso.
— Mãe… — começou ele, evitando olhar-me nos olhos — Eu sei que tens boas intenções, mas preciso que percebas uma coisa: eu agora tenho uma família. A Ana sente-se invadida quando apareces sem avisar… E eu também preciso de espaço.
— Espaço? — repeti, sentindo-me cada vez mais pequena naquela cadeira dura do café. — Dei-te tudo o que tinha! Nunca te faltou nada! E agora pedes-me espaço?
Ele olhou finalmente para mim e vi nos olhos dele um misto de culpa e determinação.
— Não é isso… Só quero que respeites as nossas decisões enquanto família.
— E eu? Não sou família?
Ele ficou em silêncio.
Saí dali com uma sensação estranha: como se tivesse perdido o meu filho para sempre.
Os meses passaram e fui tentando adaptar-me à nova realidade. Comecei a fazer voluntariado na igreja local para ocupar o tempo e conhecer pessoas novas. Mas todos os dias pensava no Miguel e nos meus netos.
No Natal desse ano recebi um convite formal para jantar em casa deles. Fui cheia de esperança, mas percebi logo à chegada que era apenas uma formalidade: tudo estava preparado pela Ana; os meninos quase não me conheciam; o Miguel estava distante.
No fim da noite, quando me despedi deles à porta, abracei o meu filho com força e sussurrei-lhe ao ouvido:
— Amo-te mais do que tudo nesta vida.
Ele sorriu tristemente e respondeu:
— Eu sei, mãe.
Voltei para casa sozinha naquela noite fria de dezembro e sentei-me à janela a olhar para as luzes da cidade. Perguntei-me onde tinha falhado como mãe. Terá sido por amar demais? Por querer estar sempre presente? Ou será que há momentos em que temos mesmo de deixar ir?
E vocês? Acham que é possível amar um filho demais? Ou será que há sempre espaço para o amor de mãe?