Entre as Paredes do Passado: O Conflito da Minha Casa
“O teu marido não vai arranjar a tua casa, Mariana. Ele tem mais que fazer.”
As palavras da minha sogra, Dona Lurdes, ecoaram pela cozinha fria, onde o cheiro do café já não conseguia disfarçar a tensão. Eu estava de costas para ela, a olhar pela janela para o jardim abandonado, onde as roseiras da minha avó ainda teimavam em florir. Senti o nó na garganta apertar-se mais um pouco.
“Mas esta casa precisa de obras, Dona Lurdes. O telhado está a cair, as paredes têm humidade. Não posso deixar isto assim.”
Ela pousou a chávena com força na mesa, fazendo saltar uma gota escura para a toalha branca. “A minha casa também precisa. O António é meu filho, Mariana. E eu já não tenho idade para andar com pedreiros lá em casa.”
O António entrou nesse momento, com o casaco ainda vestido e o olhar cansado de quem já adivinha a tempestade. “O que se passa agora?”
A sogra foi rápida: “A tua mulher quer que largues tudo para arranjar esta casa velha. E eu? Fico à espera?”
Senti o sangue ferver-me nas veias. “Esta casa não é velha, é a casa dos meus avós! Foi aqui que cresci, onde os meus pais se casaram, onde tu próprio vieste pedir-me em namoro!”
O António suspirou, pousando as chaves no aparador. “Eu sei, Mariana. Mas a minha mãe também precisa de ajuda.”
“E eu? Não preciso? Não mereço?”
O silêncio caiu pesado. O relógio de parede marcava as horas com um tique-taque irritante. Lembrei-me do meu avô a dar-lhe corda todos os domingos de manhã, enquanto me contava histórias de quando era rapaz.
“Se esta casa cair, cai comigo dentro,” murmurei, quase sem voz.
A Dona Lurdes levantou-se, ajeitando o xaile nos ombros. “Não dramatizes, menina. As casas são só paredes.”
“Para si talvez sejam. Para mim são memórias.”
Ela olhou-me de cima a baixo, como quem avalia uma criança teimosa. “Memórias não pagam contas nem arranjam telhados.”
O António tentou apaziguar: “Podemos dividir o tempo. Um fim-de-semana aqui, outro lá.”
A sogra bufou: “E eu fico à espera que me caia o tecto em cima? Já viste como está o meu quarto?”
Eu sabia como estava. Já lá tinha ido ajudar a limpar a humidade das paredes, já tinha sentido o cheiro a mofo entranhado nos lençóis antigos. Mas também sabia como estava o meu sótão: com buracos por onde entrava chuva, com caixas de fotografias a apodrecer.
As discussões tornaram-se rotina. O António chegava tarde do trabalho e encontrava-me sentada na sala escura, rodeada de papéis e orçamentos de obras que nunca começavam. A Dona Lurdes ligava todos os dias, sempre com uma nova urgência: uma torneira a pingar, uma janela empenada.
Uma noite, depois de mais uma discussão acesa, sentei-me no chão do corredor e chorei como há muito não chorava. Senti-me sozinha naquela casa cheia de ecos do passado. Lembrei-me da minha mãe a cantarolar enquanto fazia bolos na cozinha, do meu pai a ler o jornal ao domingo de manhã.
No dia seguinte, fui ao sótão buscar uma caixa de fotografias antigas. Sentei-me no tapete da sala e espalhei-as à minha volta. Vi o rosto sorridente da minha avó no dia do seu casamento, o meu avô com as mãos sujas de terra no quintal, eu própria em criança a correr descalça pelo jardim.
Quando o António chegou, encontrou-me assim: rodeada de memórias e lágrimas.
“Mariana… não podemos continuar assim.”
“Eu sei,” respondi baixinho. “Mas não consigo deixar esta casa morrer.”
Ele sentou-se ao meu lado e pegou numa fotografia nossa, tirada no dia em que nos mudámos para ali.
“Lembras-te deste dia?”
Assenti com um sorriso triste.
“Eu prometi-te que íamos ser felizes aqui.”
“E fomos… até começarem as obras por fazer.”
Ele passou-me o braço pelos ombros. “Talvez estejamos a lutar pelas casas erradas.”
Olhei-o confusa.
“Talvez devêssemos lutar pela nossa família primeiro.”
Na semana seguinte, tentei falar com a Dona Lurdes sozinha. Fui até à casa dela com um bolo acabado de fazer – receita da minha avó – e sentei-me à mesa da cozinha.
“Dona Lurdes… Eu sei que precisa de ajuda. Mas eu também preciso. Esta casa é tudo o que me resta dos meus pais.”
Ela olhou-me nos olhos pela primeira vez em muito tempo.
“Sabes… quando casei com o teu sogro, também tive de lutar para manter a nossa casa em pé. Ele queria vender tudo e ir para Lisboa trabalhar numa fábrica. Eu disse-lhe que não – que as raízes são importantes.”
Fiquei em silêncio, absorvendo aquelas palavras.
“Mas às vezes,” continuou ela, “as raízes também nos prendem ao chão e não nos deixam crescer.”
Saí dali sem resposta. Passei dias a pensar nas suas palavras.
O António sugeriu vendermos ambas as casas e começarmos de novo noutro lugar qualquer. A ideia revoltou-me ao início – como podia abandonar tudo? Mas depois comecei a perceber: estávamos todos presos ao passado, incapazes de construir um futuro.
Marcámos uma reunião familiar num domingo à tarde. Sentámo-nos todos à mesa: eu, António, Dona Lurdes e até a minha irmã veio dar apoio.
Expus tudo: os orçamentos das obras, as prioridades de cada casa, os sentimentos que me consumiam há meses.
A Dona Lurdes surpreendeu-me ao dizer: “Se calhar está na altura de fazermos as pazes com o passado e pensarmos no futuro dos nossos filhos.”
Chorámos juntas nesse dia – pela primeira vez desde que me tornei parte daquela família.
Decidimos vender ambas as casas e comprar uma nova para todos vivermos juntos – três gerações sob o mesmo tecto. Não foi fácil: houve discussões sobre móveis antigos, sobre quem ficava com as fotografias ou os livros do avô.
No dia da mudança, sentei-me no degrau da velha casa dos meus avós e chorei uma última vez. O António abraçou-me forte.
“Vamos construir novas memórias,” disse ele.
Agora vivemos todos juntos numa casa cheia de luz e risos – mas às vezes ainda sonho com as paredes antigas cobertas de hera e com o cheiro do bolo da minha avó no forno.
Será que fizemos bem em deixar tudo para trás? Ou será que as casas são mesmo só paredes? O que vocês teriam feito no meu lugar?