Entre as Paredes do Nosso Lar: O Preço de Voltar para Casa
— Não podes simplesmente voltar como se nada fosse, Inês! — gritou a minha irmã, Mariana, com os olhos vermelhos de raiva e cansaço. O eco da sua voz ressoou pelas paredes do nosso velho apartamento em Lisboa, onde cada canto parecia agora demasiado pequeno para três adultos e todos os seus segredos.
Eu estava parada à porta do quarto, as malas ainda por desfazer, sentindo o peso do mundo nos ombros. O meu regresso não era um capricho. Depois de perder o emprego em Coimbra e de uma relação falhada que me deixou sem chão, voltar para casa da minha irmã era a única opção. Mas nunca imaginei que o simples ato de rodar a chave na porta pudesse desencadear uma tempestade.
— Mariana, eu não tinha para onde ir… — tentei explicar, mas ela interrompeu-me com um gesto brusco.
— O problema não és só tu! O Rui já não aguenta esta situação. Ele diz que não tem privacidade, que a nossa vida mudou desde que voltaste. — A voz dela tremia, e percebi que não era só raiva; era medo. Medo de perder tudo o que construiu.
O Rui, o marido dela, evitava-me desde o primeiro dia. Os olhares fugidios à mesa, os silêncios constrangedores na sala. Eu sentia-me uma intrusa na minha própria casa de infância. Uma noite, ouvi-os discutir no quarto ao lado:
— Ela é tua irmã, mas eu casei contigo, não com ela! — disse ele, num tom baixo mas carregado de ressentimento.
— O que queres que faça? Mandá-la para a rua? — respondeu Mariana, já a chorar.
A culpa começou a corroer-me por dentro. Passei a sair cedo e chegar tarde, procurando trabalho em cafés e lojas, qualquer coisa para poder sair dali. Mas Lisboa estava difícil, e cada recusa era mais um prego no caixão da minha autoestima.
Uma tarde chuvosa, cheguei a casa e encontrei Mariana sentada no sofá, com uma carta nas mãos e o rosto desfeito em lágrimas.
— O Rui vai pedir o divórcio — disse ela entre soluços. — E a culpa é tua!
Senti um murro no estômago. Tentei abraçá-la, mas ela afastou-me.
— Se nunca tivesses voltado, nada disto teria acontecido! — gritou.
Fugi para o quarto e enterrei a cara na almofada. As palavras dela ecoavam na minha cabeça como um mantra cruel. Será que era mesmo responsável pelo fim do casamento deles? Ou seria apenas o bode expiatório para problemas antigos?
Os dias seguintes foram um inferno. Mariana mal me falava. O Rui começou a dormir no sofá. A tensão era insuportável. Uma noite, ouvi passos no corredor e depois um baque surdo: Mariana tinha desmaiado na casa de banho. Corri para ajudá-la, mas ela afastou-me com um olhar vazio.
No hospital, enquanto esperávamos pelos exames, tentei puxar conversa:
— Mariana… desculpa. Eu nunca quis isto.
Ela olhou para mim com olhos cansados:
— Não percebes? Eu já não sei quem sou sem ele… nem sem ti. Mas não posso continuar assim.
Quando voltámos para casa, ela trancou-se no quarto durante dias. O Rui fez as malas e saiu sem dizer adeus. Fiquei sozinha na sala, rodeada por fotografias antigas: nós as duas em crianças na praia da Nazaré, os nossos pais sorridentes antes do divórcio deles…
Lembrei-me de quando éramos pequenas e prometemos nunca nos abandonar. Agora sentia-me a origem de toda a dor dela. Comecei a procurar quartos para arrendar, mesmo sem dinheiro suficiente.
Numa manhã fria de novembro, deixei uma carta em cima da mesa:
“Mariana,
Sei que te magoei sem querer. Precisas de espaço para curar e eu também. Vou sair hoje. Espero que um dia possamos perdoar-nos.”
Saí com uma mochila às costas e lágrimas nos olhos. Caminhei pelas ruas de Lisboa sentindo-me invisível entre os turistas e os elétricos amarelos. Arranjei um quarto minúsculo em Arroios, partilhado com duas estudantes brasileiras.
Os meses passaram devagar. Trabalhei num café durante o dia e dei explicações à noite para pagar as contas. Mariana não me respondeu às mensagens durante semanas. Só soube por amigos comuns que ela estava a tentar recomeçar: terapia, yoga, novos amigos.
No Natal, enviei-lhe uma mensagem curta:
“Espero que estejas bem. Sinto tua falta.”
Desta vez ela respondeu:
“Também sinto tua falta. Ainda dói muito.”
Chorei sozinha naquela noite gelada, mas pela primeira vez senti esperança.
Hoje, quase um ano depois, ainda me pergunto se fiz bem em voltar para casa naquele dia fatídico. Será que o amor entre irmãs resiste a tudo? Ou há feridas que nunca saram?
E vocês? Já sentiram que o vosso regresso mudou tudo à vossa volta? Até onde devemos ir por quem amamos?