Entre as Paredes do Meu Lar: O Peso de Ser Mulher em Portugal

— Outra vez sopa de legumes, Catarina? — A voz da minha sogra ecoou pela cozinha, carregada de desdém. — O Rui sempre gostou de carne ao jantar.

Senti o sangue ferver-me nas veias, mas limitei-me a sorrir, com aquele sorriso tenso que já se tornou um escudo. O Rui, sentado à mesa, nem levantou os olhos do telemóvel. Os miúdos brincavam na sala, alheios à tensão que pairava no ar.

Desde que casei com o Rui e viemos viver nesta casa — a casa dos pais dele, porque “é mais prático e poupa-se dinheiro” — sinto que perdi o direito ao meu próprio espaço. Tudo o que faço é escrutinado: a comida que cozinho, a roupa que escolho para os miúdos, até a forma como arrumo os sapatos no hall de entrada. A minha sogra, Dona Amélia, faz questão de me lembrar todos os dias que nunca serei tão boa dona de casa como ela foi. O meu sogro, Senhor Joaquim, limita-se a resmungar baixinho quando alguma coisa não está “como deve ser”.

— Catarina, já lavaste as camisas do Rui? Ele amanhã tem reunião importante — atirou Dona Amélia do corredor, sem sequer esperar resposta.

— Já lavei, sim — respondi, tentando manter a voz firme.

— Pois, espero que tenhas passado bem a ferro. Não quero ver o meu filho mal apresentado no trabalho.

A cada comentário, sinto-me mais pequena. Às vezes pergunto-me se algum dia vou conseguir agradar-lhes. O Rui diz sempre para não ligar, que é o feitio da mãe, mas ele próprio nunca me defende. Quando tento falar com ele sobre como me sinto, encolhe os ombros:

— Catarina, não ligues. A minha mãe é assim com toda a gente. Não vale a pena stressares.

Mas eu stresso. Sinto-me sozinha nesta casa cheia de gente. Sinto falta da minha mãe, que morreu há dois anos e era o meu porto seguro. Sinto falta do nosso apartamento pequenino em Setúbal, onde tudo era nosso e ninguém me dizia como devia viver.

Os dias passam entre tarefas domésticas e críticas veladas. Quando tento fazer algo diferente — um prato novo, uma decoração na sala — ouço logo:

— Isso não combina nada com esta casa. Sempre foste assim moderna demais para o meu gosto.

Às vezes fecho-me na casa de banho só para respirar fundo e chorar em silêncio. Não quero que os miúdos me vejam assim. Eles são a minha força, mas também o motivo pelo qual ainda não fui embora. Não quero que cresçam sem pai ou longe dos avós. Mas será justo sacrificar-me assim?

No outro dia, a Leonor chegou da escola triste porque uma colega gozou com ela por ter sempre roupa “de menino”. Fiquei devastada. Faço os possíveis para lhes dar tudo do bom e do melhor, mas aqui nada é suficiente. Dona Amélia ouviu a conversa e não perdeu tempo:

— Pois, Catarina, eu bem digo que as meninas devem vestir-se como meninas. Se ouvisses mais os mais velhos…

A vergonha e a culpa misturaram-se dentro de mim como veneno. Senti-me uma péssima mãe. À noite, enquanto arrumava a cozinha sozinha — porque aqui as mulheres é que fazem tudo — ouvi o Rui rir-se com o pai na sala sobre futebol. Pensei em confrontá-lo, pedir-lhe apoio, mas faltou-me coragem.

No domingo seguinte, durante o almoço de família, tentei desabafar com a minha cunhada, Inês:

— Sinto-me tão cansada… Às vezes acho que não pertenço aqui.

Ela olhou-me com pena:

— Eu percebo-te, Catarina. Mas sabes como é… Aqui em casa dos pais do Rui as coisas sempre foram assim. Eu própria nunca consegui mudar nada quando cá vivia.

— E como aguentaste?

— Aguentei até não aguentar mais. Acabei por sair… Mas tu tens filhos pequenos. É complicado.

A conversa ficou no ar como uma ameaça silenciosa: ou aceito ou fujo.

Nessa noite, depois de todos irem dormir, sentei-me na varanda com uma manta e olhei para o céu escuro de Lisboa. Senti um nó na garganta e chorei baixinho:

“O que é feito de mim? Onde ficou a Catarina alegre e sonhadora? Será isto a vida que quero para mim?”

No dia seguinte acordei decidida a tentar uma última vez falar com o Rui.

— Rui, preciso mesmo que me oiças — disse-lhe enquanto ele se vestia para sair.

Ele olhou-me de lado:

— O que foi agora?

— Eu não aguento mais viver assim… Sinto-me constantemente criticada pela tua mãe e tu nunca me defendes. Preciso do teu apoio! Preciso sentir que esta casa também é minha!

Ele suspirou:

— Catarina… Já falámos disto tantas vezes! Se não estás bem aqui, arranja um trabalho e vamos viver para outro lado. Mas sabes bem que agora não dá…

— Então vais continuar a fingir que está tudo bem? Vais deixar-me afundar sozinha?

Ele encolheu os ombros e saiu porta fora.

Fiquei ali parada, sozinha na cozinha fria, com vontade de gritar até perder a voz. Senti raiva dele, raiva da sogra, raiva de mim própria por não conseguir mudar nada.

Passei o resto do dia em piloto automático: levar os miúdos à escola, limpar a casa, ouvir mais críticas sobre o pó nos móveis e o jantar “sem graça”. À noite escrevi uma carta à minha mãe — sei que nunca a vai ler, mas precisava de desabafar:

“Mãe,
Sinto tanto a tua falta… Preciso tanto do teu colo agora! Sinto-me perdida nesta casa onde ninguém me vê nem me ouve. Será isto ser mulher em Portugal? Ser esposa e mãe significa anular-me completamente? Como é que tu aguentaste tantos anos?”

Guardei a carta na gaveta da mesa-de-cabeceira e adormeci exausta.

Hoje escrevo-vos porque já não sei o que fazer. Já tentaram pôr-se no meu lugar? Já sentiram esta solidão dentro da própria casa? Como é que se lida com críticas constantes sem perder quem somos? Será possível encontrar paz sem magoar quem amamos?

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem assim em silêncio? Quantas Catarinas existem espalhadas por Portugal? E vocês… o que fariam no meu lugar?