Entre as Paredes da Minha Vida: Um Drama Familiar Português

— Mãe, precisamos falar sobre a casa.

A voz da Inês ecoou pela sala, cortando o silêncio como uma navalha. Eu estava sentada na poltrona de sempre, aquela junto à janela, onde o sol da tarde desenha sombras no chão de madeira. O cheiro do café acabado de fazer ainda pairava no ar, misturado com o perfume das flores que o meu marido plantou há décadas no jardim. Olhei para ela, tentando decifrar-lhe o rosto. Havia ali uma urgência que me assustava.

— O que se passa, filha? — perguntei, tentando manter a voz firme.

Ela hesitou, mordendo o lábio inferior, como fazia em criança quando tinha medo de me magoar com alguma verdade. — Eu… Eu estive a pensar. Esta casa é grande demais para ti. E eu… eu precisava de algum dinheiro para investir no meu negócio. Se vendêssemos a casa, podíamos dividir o valor. Tu podias ir para um apartamento mais pequeno, mais fácil de cuidar…

Senti o peito apertar. Oiço o relógio de parede marcar cada segundo como se fosse um martelo a bater no meu coração. A casa? Vender a casa? Esta casa não é só paredes e telhado. É onde o teu pai morreu, onde tu deste os primeiros passos, onde o teu irmão partiu a cabeça e eu passei noites em claro ao teu lado quando tinhas febre. Como podes falar assim?

— Inês… — comecei, mas a voz falhou-me. — Isto não é só uma casa. É a nossa história.

Ela suspirou, impaciente. — Mãe, eu sei. Mas tu vives aqui sozinha há anos. O jardim está ao abandono, as infiltrações na cozinha nunca foram arranjadas… Não achas que já chega de te prenderes ao passado?

O passado… Como se fosse possível deixá-lo para trás assim tão facilmente. Lembro-me do António, do sorriso dele quando chegava do trabalho e me abraçava na cozinha. Lembro-me dos natais com a casa cheia de vozes e risos, das discussões à mesa sobre política e futebol, das lágrimas escondidas no quarto quando o meu filho mais velho foi para Inglaterra à procura de trabalho.

— E se eu não quiser vender? — perguntei, sentindo as lágrimas ameaçarem cair.

Inês olhou para mim com uma expressão dura, quase fria. — Então vais continuar aqui sozinha até quando? Até não conseguires subir as escadas? Até te esqueceres de quem és?

A raiva subiu-me à garganta. — Não fales assim comigo! Eu dei-te tudo! Trabalhei uma vida inteira para que tivesses um lar! Agora queres deitar tudo fora por dinheiro?

Ela levantou-se abruptamente, os olhos brilhando de lágrimas contidas. — Não é por dinheiro! É por mim! Por uma vez na vida queria fazer algo por mim! Sempre fui a filha perfeita, sempre pus os outros à frente… Agora preciso disto!

O silêncio caiu pesado entre nós. Senti-me velha, cansada, derrotada. Olhei em volta: as fotografias nas paredes, os móveis gastos pelo tempo, as marcas dos anos em cada canto da casa. Tudo aquilo era parte de mim. Mas será que ainda fazia sentido agarrar-me ao passado quando o presente me escorria por entre os dedos?

Naquela noite não dormi. Ouvi cada rangido da casa como se fossem gritos de protesto. As memórias assaltavam-me sem piedade: o cheiro do pão quente nas manhãs de domingo, as brincadeiras no quintal, as noites em claro à espera dos filhos adolescentes voltarem das festas. E agora… agora só restava eu e o eco dos passos solitários no corredor.

No dia seguinte, tentei falar com o meu filho, o Miguel, por videochamada. Ele estava apressado, como sempre.

— Mãe, eu percebo a Inês. Tu não podes continuar aí sozinha para sempre…

— Mas esta casa é tudo o que me resta!

Ele suspirou. — Mãe… às vezes temos de deixar ir as coisas para podermos seguir em frente.

Desliguei antes que ele visse as lágrimas a correrem-me pelo rosto.

Durante semanas vivi num limbo: cada canto da casa parecia sussurrar-me segredos antigos e promessas quebradas. Os vizinhos começaram a comentar: “A Dona Teresa está a ficar senil”, “A filha quer pô-la num lar”. Senti vergonha e raiva em doses iguais.

Um dia, ao arrumar o sótão, encontrei uma caixa cheia de cartas antigas do António. Sentei-me no chão poeirento e li cada palavra como se fosse um bálsamo para a alma ferida:

“Teresa,
Se algum dia te sentires perdida nesta casa grande demais para ti sozinha, lembra-te: as paredes não guardam só memórias boas. Às vezes é preciso abrir mão do passado para dar espaço ao futuro. Mas nunca deixes que te obriguem a nada que não sintas no coração.”

Chorei como não chorava há anos.

Na semana seguinte convoquei os meus filhos para um almoço em família. A mesa estava posta como nos velhos tempos: toalha branca, louça boa, cheiro a assado no forno.

— Quero falar convosco — disse-lhes assim que se sentaram.

O Miguel olhou para o relógio; a Inês evitou o meu olhar.

— Eu sei que querem vender a casa. Sei que acham que estou presa ao passado… Talvez estejam certos. Mas esta casa é mais do que tijolos e memórias para mim. É o último pedaço do vosso pai que ainda tenho comigo.

A Inês começou a chorar baixinho; Miguel ficou calado.

— Mas também percebo que vocês têm as vossas vidas e sonhos. Por isso decidi: vou vender a casa… mas às minhas condições. Quero escolher para onde vou viver e quero que respeitem o meu tempo.

O silêncio foi interrompido apenas pelo som dos talheres contra os pratos.

— Mãe… — sussurrou Inês — Desculpa… Eu só queria sentir que também pertenço a algum lugar.

Abracei-a com força, sentindo finalmente um pouco de paz.

Agora escrevo estas palavras sentada na varanda, olhando para o jardim onde tantas histórias começaram e terminaram. Sei que em breve terei de dizer adeus a estas paredes — mas talvez seja esse o preço de continuar a amar quem cá fica.

Pergunto-me: será que alguma vez pertencemos verdadeiramente a algum lugar? Ou somos apenas viajantes entre memórias e despedidas?