Entre a Terra e o Silêncio: O Peso das Raízes
“Não vais plantar demais, pois não? Eu sei que não me vais deixar. A tua consciência não te deixa ser preguiçosa.”
As palavras da minha mãe ecoavam no quintal, misturando-se com o cheiro da terra molhada e o som abafado das enxadas. Eu, Mariana, estava de joelhos, as mãos sujas de lama, a tentar arrancar as ervas daninhas que insistiam em crescer entre as couves. O sol já ia alto, mas o frio de abril ainda se fazia sentir nos ossos. Olhei para ela, de lenço na cabeça e olhar duro, e tentei conter a raiva que me subia à garganta.
“Não percebo porque é que tens de trabalhar tanto aqui. Podíamos só semear relva e descansar. Para quê esta horta toda?”
A minha mãe largou a enxada com força, fazendo um som seco contra a pedra. Aproximou-se de mim, os olhos brilhando de uma mistura de cansaço e mágoa.
“Descansar? Descansar de quê, Mariana? Achas que a terra se trabalha sozinha? Achas que o pão aparece na mesa por milagre?”
Suspirei, sentindo o peso do mundo nos ombros. Desde pequena que a minha vida era feita de madrugadas frias, de calos nas mãos e de silêncios pesados à mesa. O meu pai morreu cedo, esmagado por um trator velho que nunca devíamos ter comprado. Ficámos só nós as duas, presas a esta casa de pedra, rodeadas de oliveiras e memórias que não nos largavam.
Tentei argumentar, mas a voz saiu-me trémula:
“Eu só queria… só queria ter tempo para mim. Para estudar, para sair daqui um dia.”
A minha mãe virou-me as costas, enxugando uma lágrima disfarçada com a manga do casaco. “Tempo para ti… E eu? Quando é que tive tempo para mim?”
O silêncio caiu pesado entre nós. Oiço ao longe o sino da igreja, marcando as horas como se fosse um lembrete cruel de tudo o que ainda faltava fazer. Os vizinhos passavam na estrada de terra batida, acenando com um misto de pena e curiosidade. Todos sabiam da nossa história. Todos sabiam que eu era a filha que queria fugir.
À noite, sentávamo-nos à mesa, a sopa fumegante entre nós. O rádio antigo tocava fados tristes, e eu sentia o coração apertar-se no peito. A minha mãe falava pouco, mas quando o fazia era sempre sobre a terra, as colheitas, o medo de perder tudo.
“Se tu fores embora, Mariana, quem fica comigo? Achas que a terra espera?”
Eu queria gritar que sim, que a terra podia esperar, que a vida era mais do que batatas e feijões. Mas não conseguia. A culpa era uma erva daninha que me crescia por dentro, sufocando qualquer vontade de partir.
Os dias passavam lentos. Acordava antes do sol, ouvia os galos cantar e sentia o cheiro do café acabado de fazer. A minha mãe já estava no quintal, a falar sozinha com as galinhas. Eu vestia-me devagar, arrastando os pés como se cada passo fosse uma traição.
Um dia, ao regressar da escola, encontrei-a caída junto ao poço. O coração disparou-me no peito. Corri, ajoelhei-me ao lado dela, as mãos trémulas a procurar sinais de vida. Ela abriu os olhos devagar, murmurando:
“Só estava cansada, filha. Só isso.”
Levei-a para dentro, preparei-lhe chá e sentei-me ao seu lado. Pela primeira vez em anos, vi-a frágil, pequena, como uma criança perdida. Senti uma onda de ternura e raiva ao mesmo tempo. Porque é que tinha de ser tudo tão difícil?
Nessa noite, enquanto ela dormia, sentei-me à janela e escrevi no meu diário:
“Será que algum dia vou conseguir sair daqui sem sentir que a estou a abandonar? Será que a terra nos prende ou somos nós que nos agarramos a ela?”
Os meses seguintes foram uma luta constante. A minha mãe recuperou devagar, mas nunca mais foi a mesma. Eu fazia tudo: tratava da horta, das galinhas, da casa. Os meus sonhos de estudar em Lisboa pareciam cada vez mais distantes.
Um dia, recebi uma carta da Universidade do Porto. Tinha sido aceite no curso de Biologia. O coração saltou-me no peito, mas logo senti o peso da realidade a puxar-me para baixo. Mostrei a carta à minha mãe, esperando um sorriso, um sinal de orgulho. Mas ela apenas olhou para mim com tristeza.
“E agora? Vais-me deixar sozinha?”
As palavras dela foram como facas. Passei dias sem dormir, dividida entre a vontade de partir e o medo de a perder. Os vizinhos começaram a comentar:
“A Mariana vai-se embora e deixa a mãe sozinha. Que vergonha.”
Oiço as conversas à porta da igreja, os olhares de reprovação no mercado. Sinto-me encurralada.
Na véspera da minha partida, sentei-me com a minha mãe à lareira. O fogo crepitava, lançando sombras nas paredes de pedra. Ela pegou na minha mão, os olhos cheios de lágrimas não choradas.
“Eu sei que tens de ir, filha. Só peço que não te esqueças de onde vens.”
Abracei-a com força, sentindo o cheiro da terra entranhado na sua pele. Prometi voltar sempre que pudesse, prometi não a esquecer. Mas no fundo sabia que nada seria igual.
No comboio para o Porto, olhei pela janela e vi os campos a desaparecerem ao longe. Senti um misto de alívio e culpa. Será que fiz bem? Será que algum dia vou conseguir perdoar-me por ter escolhido a minha vida em vez da dela?
Agora, anos depois, escrevo esta história sentada num pequeno apartamento na cidade. Tenho saudades do cheiro da terra molhada, do silêncio das noites em Trás-os-Montes. A minha mãe já partiu, e eu herdei a casa e a horta. Volto lá sempre que posso, mas nunca mais consegui arrancar as ervas daninhas sem pensar nela.
Pergunto-me muitas vezes: será que somos livres para escolher o nosso caminho ou estamos sempre presos às raízes que nos deram vida? E vocês, o que fariam no meu lugar?