Entre a Sombra do Meu Marido e o Silêncio da Minha Casa: O Grito Que Ninguém Ouvia

— Vais sair outra vez, Ricardo? — perguntei, a voz a tremer mais de raiva do que de medo, enquanto a chuva batia com força nos vidros da sala. Ele nem olhou para mim. Pegou nas chaves do carro e murmurou, como quem repete uma rotina: — A minha mãe precisa de mim. Sabes como ela está desde que o meu pai morreu.

Fiquei ali, parada, com o nosso filho, Tomás, a dormir no quarto ao lado, e o cheiro a sopa de legumes ainda no ar. O relógio marcava quase dez da noite. Mais uma vez, a casa era só minha. Ou melhor, só minha e dos meus pensamentos, que gritavam mais alto do que qualquer trovão lá fora.

Não foi sempre assim. Quando casei com o Ricardo, há seis anos, ele era o homem mais presente, mais atento, mais apaixonado. Lembro-me de noites em que ficávamos a conversar até às tantas, a fazer planos para viagens, para filhos, para uma vida a dois. Mas depois do nascimento do Tomás, tudo mudou. Primeiro foi o trabalho — “preciso de fazer horas extra, a empresa está a apertar”. Depois, a doença do sogro, que acabou por morrer no inverno passado. E, desde então, a mãe dele tornou-se o centro do universo do Ricardo. Eu? Eu era o satélite esquecido, a girar em torno de uma família que não era bem a minha.

— Não podes ir amanhã? — insisti, já a sentir a voz embargada. — O Tomás esteve com febre o dia todo, e eu também não estou bem. Preciso de ti aqui.

Ele suspirou, finalmente parando à porta. — Marta, não compliques. A minha mãe está sozinha. Não percebes?

E saiu, deixando a porta a bater atrás de si, como se fechasse uma janela para mim. Sentei-me no sofá, abracei as pernas e chorei em silêncio. Não queria acordar o Tomás. Não queria que ele visse a mãe assim, tão pequena, tão invisível.

Os dias seguintes foram iguais. Ricardo saía cedo, voltava tarde. Às vezes, nem jantava em casa. Quando vinha, era só para tomar banho e deitar-se, exausto, sem um beijo, sem um “como estás?”. A minha sogra ligava-me todos os dias, perguntando se o Ricardo já tinha chegado, se podia passar lá a noite, se eu não me importava de ficar sozinha. “Ele é o meu único filho”, dizia ela, como se eu fosse uma intrusa, uma ameaça ao amor dela.

Comecei a sentir-me uma sombra na minha própria casa. Os amigos afastaram-se — “não tens tempo para nada, Marta”. A minha mãe, viúva como a sogra, morava longe, em Viseu, e só vinha de vez em quando. O Tomás era o meu único companheiro, mas até ele, com dois anos, já percebia o silêncio pesado que pairava entre mim e o pai.

Uma noite, depois de deitar o Tomás, sentei-me à mesa da cozinha e escrevi uma carta ao Ricardo. Não sabia se ele a leria, mas precisava de deitar cá para fora tudo o que me sufocava.

“Ricardo,

Sinto-me sozinha. Sinto que perdi o marido que amava e ganhei um fantasma que entra e sai sem me ver. Sei que a tua mãe precisa de ti, mas eu também preciso. O Tomás precisa. Não quero ser egoísta, mas não posso continuar a fingir que está tudo bem. Preciso de ti aqui, connosco. Preciso de sentir que ainda fazemos parte da tua vida.”

Deixei a carta em cima da mesa. Quando acordei, ela já lá não estava. Mas também não houve conversa, nem abraço, nem sequer um olhar diferente. Só o mesmo silêncio, o mesmo afastamento.

O tempo foi passando. O Tomás crescia, eu voltava ao trabalho a meio tempo, mas a rotina era sempre igual. Um dia, a educadora do Tomás chamou-me à parte.

— A Marta está bem? — perguntou, com aquela voz doce de quem sabe mais do que diz. — O Tomás anda muito calado. Desenha sempre a mãe sozinha. Nunca desenha o pai.

Senti um nó na garganta. Saí da escola a chorar, sem saber se era raiva, tristeza ou só cansaço acumulado. Liguei à minha mãe. — Mãe, não aguento mais. Sinto-me invisível. — Ela ouviu-me em silêncio e depois disse: — Filha, às vezes é preciso gritar para sermos ouvidas. Não te cales.

Nessa noite, esperei pelo Ricardo. Quando entrou, já depois da meia-noite, sentei-me à mesa da cozinha, com a luz acesa e a carta antiga à minha frente.

— Ricardo, precisamos de falar. Agora.

Ele olhou-me, cansado. — Marta, estou exausto. Não pode ser amanhã?

— Não. Ou falamos hoje, ou não sei o que vai ser de nós.

Ele sentou-se, finalmente. — O que queres que eu faça? A minha mãe está sozinha, tu estás sempre a reclamar, o trabalho não me dá descanso. Não posso dividir-me em três.

— Não quero que te dividas. Quero que escolhas. Quero saber se ainda faço parte da tua vida, ou se sou só a mãe do teu filho e a mulher que vive aqui.

Ele ficou em silêncio. Ouvia-se só o vento lá fora, e o meu coração a bater tão alto que parecia ecoar pela casa toda.

— Não é justo, Marta. A minha mãe perdeu tudo. Precisa de mim.

— E eu? Eu não perdi nada? Não perdi o marido, a companhia, o amor? Não estou aqui todos os dias a tentar segurar uma família sozinha?

Ele baixou os olhos. Pela primeira vez em meses, vi-lhe as lágrimas nos olhos.

— Não sei como fazer diferente — murmurou. — Sinto-me preso. Se não ajudo a minha mãe, sinto-me um mau filho. Se não estou contigo, sinto-me um mau marido. E no trabalho, sinto-me um fracasso.

Aproximei-me dele. — Não tens de ser perfeito. Só tens de estar presente. Só preciso de saber que ainda te importas.

Nessa noite, dormimos juntos pela primeira vez em muito tempo. Não foi um milagre. No dia seguinte, ele voltou a sair cedo, mas deixou-me um bilhete: “Vou tentar estar mais presente. Não desistas de mim.”

As coisas não mudaram de um dia para o outro. Houve recaídas, discussões, silêncios. A minha sogra continuava a ligar, a pedir, a exigir. O trabalho continuava a consumir o Ricardo. Mas eu deixei de me calar. Comecei a sair mais com o Tomás, a procurar amigas, a pedir ajuda à minha mãe. Fui à psicóloga. Aprendi a dizer “não”.

Um sábado, o Ricardo ficou em casa. Fizemos panquecas, fomos ao parque, rimos juntos. O Tomás desenhou-nos os três, de mãos dadas. Guardei esse desenho como um tesouro.

Ainda hoje, há dias em que me sinto sozinha. Em que o Ricardo volta a ser um fantasma, em que a sogra me faz sentir uma intrusa. Mas já não sou a sombra de mim mesma. Aprendi a gritar, a pedir, a exigir o meu lugar.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem assim, invisíveis na sua própria casa? Quantas de nós têm de gritar para serem ouvidas? E tu, já te sentiste um fantasma na tua própria vida?