Entre a Limpeza e o Caos: O Peso Invisível de um Casamento Português

“Preciso de limpeza e ordem. Se não consegues dar-me isso, faz as malas.” As palavras do Rui ainda ecoavam na minha cabeça, mesmo depois de ele ter batido a porta de casa às sete da manhã. Fiquei deitada mais meia hora, enroscada nos lençóis quentes, a olhar para o tecto, como se ali encontrasse uma resposta para o vazio que sentia. O silêncio da casa era pesado, quase sufocante.

Levantei-me devagar, os pés frios a tocarem o chão de madeira. Passei pela sala, onde ainda se viam as marcas dos sapatos do Rui no tapete bege. O cheiro do café que ele tinha feito pairava no ar, misturado com o aroma agridoce do detergente barato que usava para limpar a bancada. Olhei para a mesa da cozinha: duas chávenas, uma com restos de café, outra vazia; um prato com migalhas de pão e manteiga endurecida.

Suspirei. “Outra vez o mesmo…”, murmurei para mim própria. Desde que me despedi do emprego no escritório, há quase um ano, que a casa se tornou o meu mundo — e a minha prisão. Rui dizia que era só até eu encontrar algo melhor, mas cada entrevista falhada era mais um pretexto para ele me lembrar que agora era eu quem devia garantir que tudo estava perfeito em casa.

A campainha tocou de repente, fazendo-me estremecer. Era a minha mãe, Dona Teresa, com o seu ar de sempre — olhar crítico, cabelo preso num coque apertado. “Vim trazer-te uns bolinhos e ver como estavas,” disse ela, entrando sem esperar convite.

— Olha para isto, filha… — começou logo, olhando em volta — Não tens aspirado? E aquela roupa ali por passar? Sabes que o Rui não gosta disto…

Mordi o lábio para não responder. A minha mãe sempre foi assim: exigente, perfeccionista, incapaz de perceber que às vezes só queremos respirar sem sentir culpa. Sentei-me à mesa enquanto ela arrumava os bolinhos na travessa.

— Sabes, mãe, às vezes sinto que não sou suficiente. Que nunca vou conseguir agradar ao Rui… nem a ti.

Ela parou por um instante e olhou-me nos olhos. Vi ali um lampejo de ternura, mas logo se dissipou.

— Tens de te esforçar mais, filha. Os homens gostam de ordem. Se não lhes damos isso, procuram noutro lado.

As palavras dela eram como facas. Lembrei-me do meu pai, que saiu de casa quando eu tinha dez anos. A minha mãe sempre disse que foi porque ela não era suficientemente boa dona de casa. Cresci a acreditar que o amor dependia da perfeição — da casa impecável, da comida quente na mesa, do sorriso pronto mesmo quando só queremos chorar.

Depois que ela saiu, fiquei sozinha com os meus pensamentos e uma pilha de roupa para passar. Liguei a televisão só para ouvir vozes humanas. No telejornal falavam da crise, do desemprego, dos jovens que emigravam para Inglaterra ou França à procura de uma vida melhor. Pensei na minha amiga Inês, que agora vivia em Lyon e dizia sentir-se finalmente livre.

O telefone tocou. Era o Rui.

— Já acordaste? — perguntou sem rodeios.

— Sim… Estou a tratar das coisas.

— Espero bem que sim. Ontem cheguei e estava tudo uma confusão. Não quero ter esta conversa outra vez. Sabes como é importante para mim chegar a casa e sentir tudo limpo.

Fiquei calada por uns segundos.

— Ouviste? — insistiu ele.

— Ouvi…

Desligou sem dizer adeus. Senti um nó na garganta. Fui até à janela e olhei lá para fora: vizinhas a pendurar roupa nas varandas, crianças a correr pelo pátio do prédio ao lado. Perguntei-me se alguma delas sentia este peso no peito.

Passei o resto da manhã a limpar freneticamente: aspirador ligado, panos húmidos nas mãos, esfregando cada canto como se pudesse apagar dali todas as discussões e mágoas acumuladas. Quando terminei, sentei-me no sofá exausta e olhei em volta: tudo brilhava, mas dentro de mim continuava tudo desarrumado.

À hora do almoço fui buscar pão à padaria da Dona Lurdes. Ela olhou para mim com aquele ar maternal:

— Estás tão magrinha, menina Ana… O Rui não te anda a dar trabalho a mais?

Sorri sem vontade.

— É só uma fase… Vai passar.

Ela abanou a cabeça.

— Não deixes que te tirem o sorriso. A vida é curta demais para vivermos tristes dentro de casa.

Aquelas palavras ficaram comigo enquanto voltava para casa com o saco de pão quente nas mãos geladas. Sentei-me à mesa e comi sozinha, olhando para o relógio: faltavam três horas para o Rui chegar.

À tarde tentei distrair-me com um livro antigo da escola secundária — “Os Maias” — mas as palavras pareciam dançar à minha frente sem fazer sentido. Lembrei-me dos tempos em que sonhava ser professora ou escritora; agora mal conseguia escrever uma lista de compras sem sentir culpa por perder tempo.

Quando o Rui chegou a casa ao fim do dia, entrou sem dizer boa tarde e foi direto inspecionar a casa. Passou o dedo pela prateleira da sala, olhou para o chão da cozinha.

— Assim sim — disse finalmente — Vês como consegues quando queres?

Senti vontade de gritar, mas limitei-me a sorrir e perguntar:

— Queres jantar agora?

Ele assentiu com a cabeça e sentou-se à mesa sem olhar para mim. Enquanto lhe servia o prato, reparei nas minhas mãos trémulas. Durante o jantar falou pouco; comentou apenas sobre um colega novo no trabalho e sobre o trânsito caótico na cidade.

Depois do jantar fui arrumar a cozinha enquanto ele via televisão na sala. Oiço-o rir-se alto com um programa qualquer; eu só queria desaparecer dentro do armário das vassouras.

Mais tarde, já na cama ao lado dele — cada um virado para seu lado — pensei em tudo o que tinha perdido: os sonhos de juventude, as tardes com amigas no café da esquina, as conversas animadas com a minha irmã mais nova antes dela emigrar para Berlim. Pensei também no medo: medo de ficar sozinha como a minha mãe ficou; medo de nunca ser suficiente; medo de acordar um dia e não me reconhecer ao espelho.

Fechei os olhos e deixei as lágrimas caírem em silêncio. Perguntei-me: quantas mulheres portuguesas vivem assim? Quantas sacrificam a sua paz por uma ordem imposta por outros? Será que algum dia vou ter coragem de escolher a desordem da liberdade em vez da prisão da perfeição?

E vocês? O que fariam se tivessem de escolher entre agradar aos outros ou finalmente agradar a si próprios?