Entre a Fé e o Silêncio: O Meu Inverno com a Minha Avó Maria

— Miguel, vem já aqui! — gritou a minha mãe, a voz embargada pelo medo. O som ecoou pelo corredor frio do nosso apartamento em Braga, cortando o silêncio da noite como uma lâmina. Saltei da cama, tropeçando nos chinelos, o coração a martelar no peito. Ao chegar à sala, vi a minha avó Maria caída no chão, os olhos semicerrados e a respiração entrecortada. A minha mãe ajoelhada ao lado dela, lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto.

— Mãe, por favor, diz alguma coisa! — implorava ela, segurando-lhe a mão.

Eu fiquei ali, paralisado, sentindo-me pequeno e inútil. A minha avó sempre fora o pilar da nossa família. Era ela quem fazia o caldo verde aos domingos, quem me contava histórias de quando era menina em Trás-os-Montes, quem rezava o terço todas as noites antes de dormir. Agora, parecia tão frágil, tão longe.

O meu pai entrou apressado, já com o telemóvel na mão.

— Chama o INEM! — gritou a minha mãe.

Enquanto esperávamos pela ambulância, ajoelhei-me ao lado da minha avó e comecei a rezar baixinho. Não sabia bem o que dizer. Só me vinha à cabeça aquela oração que ela me ensinara quando era pequeno: “Anjo da Guarda, minha companhia…” Senti as lágrimas quentes escorrerem-me pelo rosto.

A ambulância chegou com as luzes azuis a piscar. Os paramédicos entraram apressados, fizeram perguntas rápidas e levaram-na. Ficámos ali, eu e os meus pais, abraçados no corredor vazio. O cheiro do perfume da minha avó ainda pairava no ar.

Naquela noite não dormi. Fiquei sentado na cama, a olhar para o teto, a ouvir o vento bater nas janelas. Lembrei-me de todas as vezes que a minha avó me dizia: “Miguel, nunca percas a fé. Mesmo quando tudo parece perdido.” Mas agora era difícil acreditar. Porque é que Deus permitia que pessoas boas sofressem assim?

No hospital, os médicos disseram que tinha sido um AVC. O prognóstico era reservado. A minha mãe desfez-se em lágrimas. O meu pai tentou ser forte, mas vi-lhe os olhos vermelhos e as mãos a tremer.

Os dias seguintes foram um nevoeiro de idas e vindas ao hospital, telefonemas para tios e primos espalhados por Portugal inteiro. A família dividiu-se entre esperança e desespero. A minha tia Isabel, sempre tão prática, dizia:

— Temos de aceitar o que Deus quiser. Não adianta rezar agora.

A minha mãe respondia-lhe com raiva:

— Como podes dizer isso? Se não rezarmos agora, quando é que vamos rezar?

Eu sentia-me perdido entre as duas. Queria acreditar que as orações faziam diferença, mas também sentia uma raiva surda por dentro. Porque é que Deus não respondia?

Uma noite, sentei-me ao lado da cama da minha avó no hospital. Ela estava ligada a máquinas, os olhos fechados. Peguei-lhe na mão e comecei a rezar o terço em voz baixa. Senti uma paz estranha invadir-me. Era como se ela ainda estivesse ali comigo, como se me dissesse para não desistir.

No dia seguinte, a minha mãe trouxe um terço azul-claro que tinha pertencido à minha bisavó. Colocou-o na cabeceira da cama da minha mãe e disse:

— Vamos rezar juntos todas as noites.

E assim fizemos. Eu, os meus pais e até o meu irmão mais novo, o João, que nunca tinha mostrado grande interesse por estas coisas. Cada um rezava à sua maneira: eu pedia força para aguentar mais um dia; a minha mãe pedia um milagre; o meu pai pedia coragem para não desabar à nossa frente.

Os dias foram passando devagar. A família começou a mostrar as suas fissuras. A tia Isabel queria vender a casa da aldeia para pagar as despesas do hospital; o tio António recusava-se terminantemente:

— A casa é da mãe! Enquanto ela viver ninguém lhe toca!

As discussões tornaram-se frequentes. Uma noite ouvi os meus pais a discutir na cozinha:

— Não aguento mais esta pressão! — dizia o meu pai.

— E achas que eu aguento? — respondia a minha mãe entre soluços.

Eu sentia-me esmagado entre os adultos e os seus problemas. Só queria que tudo voltasse ao normal.

Uma tarde chuvosa de fevereiro, sentei-me na igreja de São Vítor sozinho. O cheiro das velas queimadas e do incenso encheu-me os pulmões. Olhei para o altar e sussurrei:

— Deus, se estás aí… ajuda-nos. Dá-nos um sinal.

Nesse momento uma senhora idosa sentou-se ao meu lado. Olhou para mim com ternura e disse:

— Às vezes Deus responde no silêncio. Não desistas de rezar.

Saí dali com uma sensação estranha de esperança.

Na semana seguinte, a minha avó abriu os olhos pela primeira vez desde o AVC. A enfermeira chamou-nos logo:

— Venham depressa! Ela está acordada!

Corremos todos para o hospital. Quando entrei no quarto vi-a sorrir levemente para mim.

— Miguel… — murmurou ela com dificuldade.

As lágrimas correram-me pelo rosto sem vergonha nenhuma.

A recuperação foi lenta e cheia de altos e baixos. A fisioterapia era dolorosa; havia dias em que ela não queria comer ou falar com ninguém. Mas todas as noites continuávamos a rezar juntos.

A família foi-se reaproximando aos poucos. A tia Isabel pediu desculpa pelas discussões; o tio António prometeu ajudar mais nas despesas. O João começou até a ajudar nas tarefas de casa sem reclamar.

Na Páscoa desse ano conseguimos finalmente trazer a avó para casa. Estava mais fraca, mas sorria sempre que nos via juntos à mesa.

Nessa noite sentei-me ao pé dela enquanto ela passava os dedos trémulos pelo terço azul-claro.

— Vês, Miguel? Nunca estamos sozinhos quando temos fé — disse-me ela com um sorriso cansado mas cheio de luz.

Agora olho para trás e pergunto-me: teria sido tudo diferente se não tivéssemos rezado juntos? Ou será que foi precisamente essa união na fé que nos salvou? Quantas famílias se perdem no silêncio quando podiam encontrar esperança na partilha dos seus medos?

E vocês? Já sentiram que só a fé vos manteve de pé quando tudo parecia desabar?