Entre a Dor e o Silêncio: O Dia em que a Minha Mãe e a Minha Sogra se Enfrentaram na Maternidade
— Não, mãe, não quero que ela entre! — gritei, com a voz embargada, enquanto sentia outra contração a rasgar-me por dentro. O suor escorria-me pela testa, misturando-se com lágrimas de medo e de raiva. A minha mãe, Dona Lurdes, olhou-me com preocupação, mas manteve-se firme ao meu lado, segurando-me a mão com força. Do outro lado da porta, ouvia-se a voz insistente da minha sogra, Dona Amélia, a exigir entrar na sala de parto.
— Eu sou avó deste menino! Tenho tanto direito como a mãe dela! — a voz dela ecoava pelo corredor, misturando-se com o cheiro a desinfetante e o som abafado dos monitores cardíacos.
Naquele momento, entre a dor física e o caos emocional, senti-me mais sozinha do que nunca. O meu marido, Rui, estava a caminho, preso no trânsito da Segunda Circular, e eu, prestes a dar à luz o nosso terceiro filho, tinha de decidir quem ficava comigo no momento mais vulnerável da minha vida.
A minha relação com a Dona Amélia nunca foi fácil. Desde o início, ela fazia questão de lembrar-me que o Rui era o seu único filho, o seu menino de ouro. Sempre que podia, criticava a forma como eu educava os meus filhos, a comida que fazia, até a maneira como arrumava a casa. Mas, naquele dia, tudo parecia amplificado. O hospital de Santa Maria estava cheio, as enfermeiras corriam de um lado para o outro, e eu sentia-me uma ilha de dor e ansiedade.
— Filha, tens de decidir agora. — A minha mãe sussurrou, tentando manter a calma. — Queres que eu fique ou preferes que a Amélia entre?
Fechei os olhos, tentando afastar o barulho, o cheiro, a pressão. Lembrei-me do parto do meu segundo filho, quando a Dona Amélia entrou sem pedir licença, tirou fotos sem me perguntar, e depois mostrou a toda a família, mesmo quando eu lhe pedi para não o fazer. Senti uma raiva antiga a crescer-me no peito.
— Quero que fiques tu, mãe. — Disse, quase num sussurro, mas com uma firmeza que me surpreendeu.
Nesse instante, ouvi a porta abrir-se com força. Dona Amélia entrou, de bata azul, o cabelo pintado de loiro impecável, os olhos brilhando de determinação.
— Isto é um absurdo! — gritou. — Eu tenho direito! O Rui quer que eu esteja aqui!
As enfermeiras tentaram acalmá-la, mas ela não arredava pé. O ambiente ficou tenso, quase irrespirável. Senti o meu corpo a tremer, não só pela dor das contrações, mas pelo medo de perder o controlo da situação.
— Amélia, por favor, respeite a vontade da minha filha — disse a minha mãe, com uma calma que só as mães sabem ter.
— A sua filha não manda aqui! — respondeu ela, apontando-me o dedo. — Eu sou família!
Nesse momento, a médica entrou, com um ar decidido.
— Aqui, quem decide é a parturiente. Dona Amélia, se não sair, vou chamar a segurança.
O silêncio caiu como uma pedra. Dona Amélia olhou-me nos olhos, e vi ali uma mistura de mágoa e fúria que nunca esquecerei. Saiu, batendo a porta.
O parto foi longo. Entre gritos, lágrimas e palavras de encorajamento da minha mãe, nasceu o pequeno Tomás, saudável, a chorar com força. Mas a alegria foi ensombrada por uma sensação de perda. Sabia que, ao escolher a minha mãe, tinha traído a expectativa da Dona Amélia — e, talvez, do Rui.
Quando o Rui chegou, já com o Tomás nos braços, olhou-me com uma expressão estranha.
— A minha mãe ligou-me a chorar — disse, baixinho. — Disse que a humilhaste à frente de toda a gente.
Senti uma pontada no peito, diferente das dores do parto. Tentei explicar-lhe, mas ele estava magoado. Durante dias, evitou falar do assunto. Dona Amélia não me atendeu o telefone, nem veio visitar o neto.
Os dias seguintes foram um turbilhão. Entre as noites mal dormidas, as cólicas do Tomás e o silêncio pesado do Rui, sentia-me a afundar. A minha mãe tentava ajudar, mas eu sabia que ela também se sentia culpada. O ambiente em casa tornou-se tenso. Os meus outros filhos, a Matilde e o João, perguntavam porque é que a avó Amélia não vinha mais cá.
Uma tarde, ao ir buscar a Matilde à escola, encontrei a Dona Amélia à porta. Estava com os olhos inchados, mas o mesmo ar altivo de sempre.
— Preciso de falar contigo — disse, sem rodeios.
Fomos até ao café da esquina. Ela pediu um galão, eu um chá, mas nenhuma de nós tocou na bebida.
— Eu só queria estar presente — começou ela, a voz a tremer. — Sinto que me tiraste tudo. Primeiro o Rui, agora os meus netos.
— Dona Amélia, eu precisava de paz naquele momento. Não foi contra si. — Tentei explicar, mas ela interrompeu-me.
— Tu nunca me aceitaste. Sempre fizeste questão de me pôr de parte. — As palavras dela eram facas.
Fiquei sem resposta. Era verdade? Sempre tentei proteger o meu espaço, mas será que fui injusta?
— Eu só queria que respeitasse o meu momento. — Disse, finalmente, com lágrimas nos olhos.
Ela levantou-se, ajeitou o casaco e saiu sem olhar para trás.
Os meses passaram. O Rui e eu fomos à terapia de casal. Falámos sobre limites, sobre família, sobre o peso das expectativas. A relação com a Dona Amélia nunca mais foi a mesma. Ela vê os netos, mas há sempre um muro invisível entre nós.
Hoje, ao olhar para o Tomás a dormir no berço, pergunto-me se fiz a escolha certa. Será que, ao proteger o meu momento, destruí uma ponte que nunca mais conseguirei reconstruir? Ou será que, finalmente, aprendi a pôr-me em primeiro lugar?
E vocês, o que fariam no meu lugar? Até onde iriam para proteger o vosso espaço num momento tão delicado?