Entre a Culpa e a Liberdade: O Peso de Ser Filha em Portugal

— Tu és mesmo ingrata, Mariana! — O grito da minha mãe ecoava pela casa, atravessando as paredes finas do nosso apartamento em Almada. — O teu irmão precisa de ti, e tu só pensas em ti própria!

Eu estava sentada na beira da minha cama, os livros do secundário abertos mas as palavras embaralhadas pela raiva e pelo medo. O meu irmão, o Tiago, tossia no quarto ao lado. Desde que nasceu com fibrose quística, a nossa casa transformou-se num hospital improvisado e eu, numa enfermeira involuntária. Mas nada do que eu fazia parecia suficiente para a minha mãe.

— Não posso faltar ao teste amanhã, mãe — tentei argumentar, a voz trémula. — Já faltei demasiado este ano…

Ela entrou no quarto como uma tempestade, os olhos vermelhos de cansaço e ressentimento.

— O Tiago pode morrer a qualquer momento! E tu preocupada com testes? Se fosses tu naquela cama, eu nunca te deixava sozinha!

A culpa era uma sombra constante. Cresci a ouvir que era egoísta por querer sair com amigos, por querer estudar, por sonhar com uma vida fora daquele apartamento abafado pelo cheiro a medicamentos. O meu pai abandonou-nos quando eu tinha oito anos — nunca soube lidar com a doença do Tiago nem com o temperamento da minha mãe. Desde então, éramos só nós três, presos num ciclo de doença e recriminações.

No dia em que fiz dezoito anos e terminei o secundário, tomei uma decisão. Arrumei as poucas roupas que tinha numa mochila e deixei um bilhete na mesa da cozinha:

“Mãe, não aguento mais. Preciso de viver a minha vida. Amo-vos.”

Fugi para Lisboa, onde uma amiga me arranjou um sofá para dormir. Os primeiros dias foram um alívio — finalmente podia respirar sem sentir o peso da culpa a esmagar-me o peito. Mas a paz durou pouco.

O telemóvel começou a vibrar incessantemente. Mensagens da minha mãe, primeiro suplicantes, depois furiosas:

“Como foste capaz de abandonar o teu irmão?”
“És uma vergonha de filha.”
“Espero que sintas na pele tudo o que nos fizeste passar.”

Bloqueei o número dela. Ela arranjou outro. E outro. As mensagens tornaram-se cada vez mais cruéis:

“Se morreres sozinha na rua, não venhas pedir ajuda.”
“Deus vai castigar-te.”
“Espero que fiques doente como o teu irmão.”

Como é que uma mãe pode desejar isto à própria filha? Perguntava-me isto todas as noites, encolhida no sofá da Inês, tentando abafar os soluços com a almofada.

A Inês tentava animar-me:

— Mariana, tu não tens culpa. A tua mãe está desesperada… mas isso não lhe dá o direito de te magoar assim.

Mas eu sentia-me culpada por tudo: por ter nascido saudável, por querer estudar psicologia na universidade, por desejar uma vida normal.

Os meses passaram. Arranjei um trabalho num café perto do Cais do Sodré e consegui alugar um quarto minúsculo numa casa partilhada com outros estudantes. A minha mãe continuava a perseguir-me digitalmente — criava perfis falsos nas redes sociais para me insultar publicamente:

“Esta é a minha filha ingrata que abandonou o irmão doente!”

Os meus colegas viam as mensagens e olhavam para mim com pena ou desconforto. Senti-me cada vez mais isolada. Comecei a evitar sair de casa, temendo encontrar alguém conhecido da minha mãe.

Um dia, recebi uma chamada do hospital Garcia de Orta. O Tiago estava internado outra vez. A enfermeira disse-me que ele perguntava por mim.

Fui visitá-lo com o coração apertado. Quando entrei no quarto, ele sorriu — um sorriso frágil mas verdadeiro.

— Sabes… eu percebo porque foste embora — disse ele baixinho. — Eu também queria fugir daqui.

Chorei em silêncio ao lado dele. A minha mãe entrou pouco depois e lançou-me um olhar de ódio.

— Vieste mostrar ao teu irmão como és feliz sem ele? — sussurrou entre dentes.

Não respondi. Não havia resposta possível para tanta dor acumulada.

Depois dessa visita, decidi afastar-me ainda mais. Mudei de número, apaguei as redes sociais e concentrei-me nos estudos e no trabalho. Mas a culpa era um fantasma persistente.

Anos passaram. Licenciei-me em psicologia e comecei a trabalhar numa associação de apoio a famílias com doenças crónicas. Todos os dias ouvia histórias parecidas com a minha: mães exaustas que descarregavam nos filhos saudáveis; irmãos que carregavam culpas impossíveis.

Um dia recebi uma carta manuscrita da minha mãe:

“Se não vieres ao funeral do teu irmão, nunca mais te perdoo.”

O Tiago tinha morrido durante uma crise respiratória. Fui ao funeral em silêncio, ignorando os olhares acusadores dos vizinhos e familiares. A minha mãe não me falou — apenas chorou alto, como se quisesse que todos soubessem quem era a verdadeira vítima.

Naquele cemitério frio de Almada, percebi finalmente: nunca seria suficiente para ela. Nunca seria perdoada por ter sobrevivido.

Hoje vivo sozinha num pequeno apartamento em Lisboa. Ainda sonho com o Tiago e com a infância roubada pela doença e pela culpa. Pergunto-me muitas vezes: será possível perdoar uma mãe que nunca nos perdoou por sermos quem somos? Será egoísmo escolhermos a nossa própria felicidade quando tudo à nossa volta nos diz que devemos sacrificar-nos pelos outros?

E vocês? Já sentiram este peso invisível da culpa familiar? Como se liberta alguém das correntes da própria família?