Entre a Amizade e a Liberdade: Quando o Dinheiro Separa Corações

— Achas mesmo que eu não conseguiria viver sem o Justino? — perguntei, com a voz a tremer, sentindo o coração bater descompassado no peito. A Eva olhou-me nos olhos, sem desviar o olhar, e respondeu com uma franqueza cortante:

— Não é isso, Mariana. Mas tu nunca trabalhaste. Sempre dependeste dele para tudo. E se um dia ele te deixar? O que vais fazer?

As palavras dela ecoaram na minha cabeça como um trovão. O café da esquina, onde costumávamos rir e partilhar segredos, parecia agora frio e distante. Senti-me exposta, como se todos à nossa volta pudessem ouvir aquela acusação velada. A chávena de chá tremia nas minhas mãos.

— Não percebes, Eva? O Justino sempre me disse que não precisava de trabalhar. Que o meu papel era cuidar da casa, dos nossos filhos. Eu confiei nele. Sempre confiei — respondi, tentando conter as lágrimas.

Ela suspirou, desviando o olhar para a janela embaciada pela chuva de novembro.

— Mariana, eu só quero o teu bem. Mas não podes viver assim, presa a alguém. Tu tens valor próprio. Não precisas de depender de ninguém para seres feliz.

Aquelas palavras doeram mais do que qualquer bofetada. Senti-me traída pela minha melhor amiga, aquela que sempre me apoiou nos momentos mais difíceis. Lembrei-me dos dias em que ela própria chorava no meu ombro por causa do divórcio com o Rui, das noites em que lhe preparei sopa e lhe fiz companhia para não se sentir sozinha.

— Achas que é fácil? — sussurrei. — Achas que eu nunca pensei nisso? Mas agora… agora já é tarde demais.

Eva pousou a mão sobre a minha, mas eu retirei-a rapidamente. O silêncio instalou-se entre nós, pesado e desconfortável. Saí do café sem olhar para trás, sentindo o peso do mundo nos ombros.

Cheguei a casa e encontrei o Justino sentado no sofá, absorto no telejornal. Os miúdos brincavam no chão da sala, espalhando legos por todo o lado. Tentei sorrir, mas ele percebeu logo que algo não estava bem.

— O que se passa? — perguntou, sem tirar os olhos do ecrã.

— Nada — menti. — Só estou cansada.

Mas não era só cansaço. Era uma angústia profunda, uma sensação de vazio que me corroía por dentro. Fui para a cozinha preparar o jantar, mas as palavras da Eva não me saíam da cabeça: “E se um dia ele te deixar?”.

Durante dias tentei ignorar aquele pensamento, mas ele perseguia-me como uma sombra. Comecei a reparar em pequenas coisas: o Justino chegava cada vez mais tarde do trabalho, respondia-me com monossílabos, parecia distante. Será que a Eva tinha razão? Será que eu estava mesmo presa numa gaiola dourada?

Uma noite, depois de deitar os miúdos, sentei-me ao lado dele no sofá.

— Justino… já pensaste alguma vez em… em separar-nos?

Ele olhou-me surpreendido.

— De onde vem essa ideia?

— Não sei… só pensei…

Ele riu-se secamente.

— Mariana, tu preocupas-te demais. Está tudo bem.

Mas não estava tudo bem. Eu sentia-o. Comecei a reparar em mensagens no telemóvel dele, risos abafados ao telefone, saídas inesperadas ao fim de semana. A dúvida instalou-se como uma erva daninha.

Certa noite, não aguentei mais e fui confrontá-lo.

— Estás a trair-me?

Ele ficou em silêncio durante uns segundos eternos.

— Mariana… isto não está fácil para mim também. Sinto-me sufocado nesta rotina. Tu mudaste…

As lágrimas correram-me pelo rosto sem controlo.

— Mudaste tu! Eu sempre estive aqui! Sempre fiz tudo por esta família!

Ele levantou-se e saiu de casa sem dizer mais nada. Fiquei sozinha na sala escura, abraçada aos joelhos como uma criança perdida.

No dia seguinte, liguei à Eva. Queria pedir-lhe desculpa pela discussão, queria ouvir a sua voz reconfortante. Mas ela não atendeu. Mandei-lhe uma mensagem: “Desculpa por ontem. Preciso de ti.” Não obtive resposta.

Senti-me completamente sozinha. Pela primeira vez na vida, questionei todas as escolhas que fiz até ali. Porque nunca trabalhei? Porque aceitei tão facilmente o papel de dona de casa? Porque confiei cegamente no Justino?

Os dias passaram arrastados. O Justino dormia no sofá ou chegava tão tarde que nem o via entrar em casa. Os miúdos começaram a perguntar porque é que o pai já não jantava connosco.

Uma tarde, enquanto arrumava o quarto das crianças, encontrei uma carta antiga da minha mãe:

“Minha filha,
A vida nem sempre é justa ou fácil. Nunca deixes de lutar por ti própria. O amor é importante, mas nunca te esqueças de quem és.”

Chorei como há muito tempo não chorava. Senti saudades da minha mãe, saudades de mim própria antes de ser só mãe e mulher do Justino.

Nesse mesmo dia, tomei uma decisão: fui ao centro de emprego da vila e inscrevi-me num curso de formação profissional em costura. Sempre gostei de costurar — fazia vestidos para as bonecas quando era pequena — mas nunca pensei nisso como uma possibilidade real.

No início senti vergonha: “O que vão pensar as vizinhas? Que estou desesperada? Que o Justino me vai deixar?” Mas depois percebi que já não me importava com o que os outros pensavam.

As aulas começaram e conheci outras mulheres com histórias parecidas à minha: a Teresa, que ficou viúva aos 40; a Filomena, cujo marido foi trabalhar para França e nunca mais voltou; a Ana Paula, mãe solteira de três filhos pequenos. Pela primeira vez em muitos anos senti-me parte de algo maior do que eu própria.

O Justino estranhou as minhas saídas diárias.

— Onde tens andado?

— Estou num curso de costura — respondi com firmeza.

Ele encolheu os ombros e voltou ao telemóvel.

Comecei a ganhar algum dinheiro com pequenos arranjos para as vizinhas e amigas das colegas do curso. O sorriso voltou devagarinho ao meu rosto.

Um dia recebi uma mensagem da Eva: “Desculpa ter sido dura contigo. Só queria abrir-te os olhos. Tenho saudades tuas.” Liguei-lhe imediatamente e marcámos um encontro no mesmo café onde tudo começou.

Quando nos sentámos frente a frente, senti um nó na garganta.

— Fui injusta contigo — admiti. — Mas tu também foste dura comigo.

Ela sorriu tristemente.

— Às vezes precisamos de ouvir verdades difíceis para acordar para a vida.

Abraçámo-nos longamente e senti que parte da mágoa se dissipava ali mesmo.

O Justino acabou por pedir-me desculpa também. Disse-me que estava perdido, cansado da rotina e assustado com as mudanças na nossa vida. Decidimos tentar outra vez — mas desta vez como parceiros iguais, cada um com o seu espaço e liberdade.

Hoje olho para trás e vejo quanto cresci desde aquela tarde chuvosa no café com a Eva. Ainda tenho medo do futuro — quem não tem? — mas agora sei que sou capaz de me erguer sozinha se for preciso.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres portuguesas vivem presas ao medo de perderem tudo porque nunca lhes foi dada outra escolha? Será que confiar cegamente é coragem ou apenas medo disfarçado? E vocês… já sentiram este aperto no peito ao pensar no vosso próprio valor?