Encontro ao Acaso: Dez Anos Depois, Entre o Remorso e a Saudade

— Vais mesmo fingir que não ouves? — A voz da Sofia ecoou pela cozinha, enquanto eu fingia estar concentrado no jornal, as mãos a tremerem levemente. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o aroma amargo da tensão. — Rui, já chega. Não aguento mais este silêncio.

Levantei os olhos, encontrando o olhar dela — cansado, magoado, mas ainda assim determinado. O relógio marcava quase meia-noite. Mais uma vez, cheguei tarde, inventando desculpas sobre reuniões intermináveis e trânsito impossível na A1. Mas Sofia sabia. Sempre soube.

— Não é nada, Sofia. Só estou cansado — menti, a voz rouca de tanto engolir palavras não ditas.

Ela largou a chávena na bancada com força. — Não me trates como parva. Achas que não vejo? Chegas tarde, não jantas, nem olhas para mim. O que se passa contigo?

O silêncio caiu de novo, pesado. Queria dizer-lhe tudo: que o passado tinha voltado a bater-me à porta, que o meu coração estava dividido entre a vida que construímos juntos e um amor antigo que nunca morreu. Mas como explicar-lhe que, dez anos depois, ainda sonhava com a Inês?

Tudo começou naquela manhã de março, quando a vi no supermercado do bairro. Estava igual — talvez mais madura, mas com o mesmo sorriso tímido e os olhos castanhos que sempre me desarmaram. Trazia uma menina pela mão, devia ter uns oito anos. O meu coração disparou.

— Rui? És mesmo tu? — perguntou ela, surpresa.

Fiquei sem palavras por segundos intermináveis. — Inês… há quanto tempo!

Conversámos ali mesmo, entre as prateleiras de arroz e azeite, como se o tempo tivesse parado. Falámos dos nossos trabalhos — ela agora era professora primária em Almada — e da vida. Não perguntei pelo pai da menina; ela também não perguntou por Sofia.

Quando nos despedimos, senti um vazio estranho. Passei o resto do dia a pensar nela, a recordar os verões em Sesimbra, os passeios de mota pela marginal, as promessas sussurradas ao luar. Lembrei-me do dia em que a perdi: uma discussão tola sobre ciúmes, palavras duras atiradas no calor do momento. Nunca mais voltámos a falar.

Nos dias seguintes, procurei desculpas para voltar ao supermercado. Queria vê-la outra vez, ouvir a sua voz calma, sentir aquele conforto antigo. Quando finalmente nos cruzámos de novo, ela sorriu como se estivesse à minha espera.

— Queres tomar um café? — arrisquei.

Sentámo-nos numa esplanada perto do rio. Falámos durante horas: das nossas famílias, dos sonhos adiados, das feridas que nunca sararam. Ela contou-me do divórcio difícil, da luta para criar a filha sozinha. Eu falei pouco de Sofia; omiti os detalhes mais dolorosos.

A partir desse dia, começámos a encontrar-nos regularmente. No início era inocente — dois velhos amigos a matar saudades. Mas depressa percebi que estava a atravessar uma linha perigosa. Sentia-me vivo ao lado dela; com Sofia, tudo parecia cinzento e previsível.

Em casa, o ambiente tornou-se insuportável. Sofia desconfiava de tudo: do perfume diferente na minha roupa, das mensagens apagadas no telemóvel, dos sorrisos ausentes ao jantar.

— Rui, diz-me só uma coisa: há outra pessoa? — perguntou ela numa noite em que cheguei ainda mais tarde do que o costume.

Olhei-a nos olhos e hesitei demasiado tempo antes de negar. Ela percebeu tudo naquele instante.

— Sabes o que dói mais? Não é traíres-me com outra mulher. É traíres tudo o que construímos juntos — murmurou ela, antes de sair da sala e fechar a porta com força.

A culpa corroía-me por dentro. Queria ser honesto com Sofia, mas também não conseguia afastar-me da Inês. Sentia-me dividido entre dois mundos: o conforto da rotina familiar e a promessa de um recomeço ao lado de alguém que nunca deixei de amar.

Numa tarde chuvosa de novembro, tomei uma decisão: ia contar tudo à Sofia e pedir-lhe perdão. Mas quando cheguei a casa, encontrei-a sentada no sofá com uma mala feita aos pés.

— Vou para casa da minha mãe uns dias. Preciso de pensar — disse ela sem me olhar nos olhos.

O vazio daquela casa sem ela foi ensurdecedor. Os dias passaram lentos; as noites eram um tormento de insónia e remorsos.

Procurei a Inês para lhe contar tudo. Encontrei-a no parque com a filha.

— Rui… não sei se consigo passar por isto outra vez — disse ela baixinho. — Já sofri demasiado por tua causa no passado.

Tentei convencê-la de que desta vez seria diferente, mas vi nos olhos dela o medo e a desconfiança.

— Preciso de proteger a minha filha — murmurou antes de se afastar.

Fiquei ali parado na chuva, sentindo-me mais sozinho do que nunca.

Os meses passaram. Sofia acabou por regressar a casa — por nós e pelos nossos filhos pequenos — mas nunca mais foi igual. O silêncio entre nós tornou-se permanente; éramos dois estranhos a partilhar o mesmo teto.

Nunca mais vi Inês. Soube por amigos comuns que se mudou para o Norte com a filha e um novo companheiro.

Hoje olho para trás e pergunto-me onde teria chegado se tivesse tido coragem de escolher antes de perder tudo. O amor verdadeiro pode esperar uma vida inteira? Ou será que há erros que nunca se perdoam?

E vocês? Já sentiram esse peso do arrependimento por escolhas mal feitas? Se pudessem voltar atrás no tempo… fariam diferente?