“Encontrei o Testamento da Mãe na Mesa de Cabeceira”: Agora, o Perdão Parece Impossível

— Não tens vergonha? — gritei, sentindo a garganta arder, enquanto Mariana me olhava com aquele ar de quem não percebe o que fez de errado. — Como é que consegues dormir à noite sabendo o que a mãe fez?

Ela não respondeu. Limitou-se a baixar os olhos para as mãos, pousadas no colo, como se procurasse ali uma resposta que nunca viria. O silêncio entre nós era tão denso que quase podia cortá-lo com uma faca. O relógio da sala marcava três da manhã e eu ainda não conseguia acreditar no que tinha lido horas antes, no papel amarelado que encontrei por acaso na mesa de cabeceira da mãe.

O testamento. O maldito testamento.

Nunca pensei que a minha vida pudesse virar do avesso por causa de umas folhas escritas à mão. A mãe sempre foi justa connosco, pelo menos era o que eu pensava. Crescemos em Almada, num apartamento pequeno mas cheio de risos e discussões típicas de irmãs. Mariana era dois anos mais nova, mas sempre foi a preferida dos vizinhos — aquela que ajudava a Dona Emília com as compras, que tirava boas notas e nunca respondia torto. Eu era a rebelde, a que fugia para a praia ao final da tarde sem avisar ninguém, a que discutia com o pai quando ele chegava bêbado e partia pratos na cozinha.

Mas a mãe… A mãe dizia sempre: “Amo-vos às duas por igual.” Eu acreditava.

Naquela noite, depois do velório, não consegui dormir. Fui ao quarto dela, talvez à procura de um cheiro, de um lenço esquecido, de qualquer coisa que me fizesse sentir menos sozinha. Foi aí que vi o envelope. O meu nome não estava lá. Só o de Mariana.

“Deixo tudo à minha filha Mariana: a casa, as poupanças, as jóias da avó.”

Senti o chão fugir-me dos pés. Sentei-me na cama dela e chorei como uma criança perdida. Lembrei-me das vezes em que a mãe me defendia do pai, das noites em que me fazia chá quando eu tinha febre, das cartas que escrevia quando fui estudar para Coimbra. Como é possível? Porquê?

No dia seguinte, enfrentei Mariana na cozinha. Ela estava a preparar café, como se nada tivesse acontecido.

— Sabias disto? — perguntei, mostrando-lhe o testamento.

Ela ficou branca como a parede atrás dela.

— Não… Eu juro que não sabia. — A voz dela tremia.

— Pois claro — respondi, amarga. — Sempre foste a preferida.

Ela tentou aproximar-se, mas recuei. Não queria ouvir desculpas nem explicações. Passei os dias seguintes num torpor estranho, entre advogados e telefonemas do tio António, que queria saber se havia alguma coisa para ele também.

A família começou a tomar partidos. A tia Rosa dizia que eu devia aceitar a vontade da mãe; o primo Luís achava tudo muito estranho e sugeriu que contestasse o testamento. Eu só queria respostas.

Mariana tentava falar comigo todos os dias. Mandava mensagens: “Por favor, fala comigo.” “Não quero perder-te também.” Mas eu não conseguia responder. Sentia-me traída por todos: pela mãe, pela irmã, até por mim própria por ter acreditado numa mentira durante tantos anos.

As semanas passaram e comecei a evitar sair de casa. Os vizinhos cochichavam quando me viam no elevador. “Coitada da Ana”, diziam uns; outros olhavam para Mariana com pena ou desconfiança. O ambiente tornou-se insuportável.

Uma noite, bati à porta da tia Rosa. Precisava de ouvir outra versão da história.

— A tua mãe amava-te muito — disse ela, servindo-me chá de camomila. — Mas nos últimos tempos estava preocupada contigo…

— Preocupada? Porquê?

— Achava que tu eras forte, Ana. Que não precisavas de nada material para seres feliz. E queria garantir que a Mariana ficava bem… Sabes como ela é insegura.

Fiquei sem palavras. Era verdade: Mariana sempre precisou de mais apoio, mais atenção. Mas isso justificava deixar-me fora do testamento? Senti raiva e tristeza ao mesmo tempo.

Os meses passaram e comecei a perceber que o dinheiro e os bens eram apenas uma parte do problema. O verdadeiro buraco estava dentro de mim: uma ferida antiga, talvez nunca sarada, sobre o meu lugar na família.

Um dia, Mariana apareceu à porta com uma caixa nas mãos.

— Isto é teu — disse ela, empurrando-me a caixa para as mãos.

Dentro estavam cartas antigas da mãe para mim, fotografias nossas na praia da Costa da Caparica, um lenço azul com o meu nome bordado.

— Não quero nada disto — disse-lhe, tentando devolver-lhe a caixa.

— Mas eu quero dar-to — insistiu ela, com lágrimas nos olhos. — A mãe deixou-me tudo porque achou que eu precisava mais… Mas tu eras o coração dela, Ana. Sempre foste.

Chorei ali mesmo, na entrada do prédio. Pela primeira vez em meses abracei a minha irmã e senti um pouco do peso sair dos meus ombros.

Mas o perdão… esse ainda não chegou completamente. Ainda acordo muitas noites com raiva e tristeza misturadas no peito. Ainda me pergunto se algum dia vou conseguir olhar para Mariana sem pensar no testamento.

Agora olho para trás e penso: será que alguma vez conhecemos verdadeiramente os nossos pais? Ou será que passamos a vida inteira à procura de sinais de amor onde eles nunca os deixaram? E vocês? Conseguiriam perdoar?