Ele traiu-me e disse que a culpa era minha. Porque me dediquei demasiado aos nossos filhos.
— A culpa não é só minha, Marta! — gritou o Rui, batendo com a mão na mesa da cozinha, tão forte que os copos tilintaram. — Tu deixaste de ser mulher para seres só mãe! Achas que isso é justo?
Fiquei ali parada, com as mãos ainda húmidas do detergente, o cheiro do arroz queimado a pairar no ar. O Tiago e a Leonor estavam no quarto, provavelmente a ouvir tudo. O Rui nunca levantava a voz, mas agora parecia outra pessoa. Senti o chão fugir-me dos pés.
— Eu fiz tudo por esta família — sussurrei, tentando não chorar. — Tudo, Rui. E tu…
Ele desviou o olhar, envergonhado ou talvez só cansado. — Eu precisava de ti, Marta. Não só como mãe dos meus filhos. Como mulher. E tu… tu desapareceste.
As palavras dele ecoaram dentro de mim como um trovão. Desapareci? Era verdade? Ou era só uma desculpa para justificar o imperdoável?
Lembro-me do dia em que descobri tudo. Foi uma mensagem no telemóvel dele, uma daquelas coisas que nunca pensamos que nos vai acontecer. “Saudades de ontem à noite”, dizia ela. O nome era Ana, uma colega do escritório que eu conhecia de vista, sempre simpática nos jantares de Natal.
Confrontei-o naquela noite, depois de deitar as crianças. Ele não negou. Não chorou. Só ficou ali, sentado no sofá, com as mãos na cabeça.
— Foi só uma vez — murmurou. — Eu… senti-me sozinho.
Sozinho? Como é que alguém se sente sozinho numa casa cheia de vida, de risos, de brinquedos espalhados pelo chão? Mas talvez ele tivesse razão. Talvez eu tivesse deixado de olhar para ele como homem e passado a vê-lo apenas como pai dos meus filhos.
Os dias seguintes foram um nevoeiro. Fui trabalhar como se nada fosse, fiz o jantar, lavei a roupa, ajudei nos trabalhos de casa. Mas por dentro estava vazia. O Rui dormia no sofá e evitava-me. As crianças começaram a perguntar porque é que o pai já não lhes dava as boas-noites.
A minha mãe percebeu logo que algo estava errado quando fui buscá-la ao centro de dia.
— Estás tão magra, filha. O que se passa?
Não consegui mentir-lhe. Chorei no carro, encostada ao volante, enquanto ela me fazia festas no cabelo como quando eu era pequena.
— Ele traiu-me, mãe. E diz que a culpa é minha.
Ela suspirou fundo. — Os homens são todos iguais… Mas tu não tens culpa de nada, Marta. Não deixes que ele te faça acreditar nisso.
Mas será mesmo assim? Comecei a duvidar de tudo: das minhas escolhas, do meu valor como mulher, até do amor que sentia pelos meus filhos. Será que me anulei tanto que deixei de ser eu?
As semanas passaram e o Rui tentou aproximar-se.
— Podemos tentar outra vez? Pelos miúdos?
Olhei para ele e vi um estranho. Lembrei-me das noites em claro com bebés febris, das reuniões de pais onde ia sozinha porque ele “tinha muito trabalho”, dos aniversários em que ele chegava atrasado ou nem aparecia.
— Pelos miúdos? Ou porque tens medo de ficar sozinho?
Ele não respondeu. Ficou só ali parado, com aquele ar derrotado.
A Leonor começou a ter pesadelos. Acordava a chorar e pedia para dormir comigo. O Tiago fechou-se ainda mais no quarto e deixou de falar comigo sobre a escola.
Um dia, depois do jantar, sentei-me com eles na sala.
— O pai vai sair cá de casa durante uns tempos — disse, tentando manter a voz firme. — Mas nós vamos ficar bem.
A Leonor chorou baixinho e abraçou-me com força. O Tiago não disse nada, mas vi-lhe as lágrimas nos olhos.
O Rui arrumou as coisas em silêncio e saiu sem olhar para trás.
Os meses seguintes foram um teste à minha resistência. Acordava todos os dias com um peso no peito, mas obrigava-me a levantar-me por eles. A minha mãe ajudava como podia, mas eu sentia-me sozinha como nunca antes.
No trabalho começaram os comentários.
— Então e o Rui? Já não o vemos nas festas da empresa…
Sorria e mudava de assunto. Não queria ser “a coitada” da repartição.
À noite, quando as crianças dormiam, chorava baixinho na cozinha para ninguém ouvir. Sentia raiva dele, mas também de mim própria por não ter visto os sinais antes.
Um dia encontrei a Ana no supermercado. Ela olhou para mim com pena nos olhos.
— Marta… desculpa…
Não consegui responder-lhe. Passei por ela como se fosse invisível e saí dali a correr.
Comecei a ir à psicóloga do centro de saúde porque sentia que estava a perder o controlo. Ela ajudou-me a perceber que eu tinha direito à minha dor, mas também à minha vida para além da maternidade.
— Marta, quem eras tu antes dos filhos? — perguntou ela numa sessão.
Fiquei sem resposta. Já nem me lembrava.
Comecei devagarinho a fazer coisas só para mim: uma caminhada ao fim da tarde enquanto a minha mãe ficava com as crianças; um café com a Susana, amiga dos tempos da faculdade; um livro lido até tarde na varanda.
O Rui continuava a ligar para falar com os miúdos e às vezes tentava conversar comigo sobre “dar uma nova oportunidade”.
— Eu mudei, Marta. Percebi o erro que cometi…
Mas eu já não era a mesma mulher que ele deixou para trás.
Um sábado à tarde levei os miúdos ao parque e vi-os brincar como se nada tivesse mudado no mundo deles. Senti uma paz estranha pela primeira vez em meses.
À noite sentei-me na cama e escrevi uma carta ao Rui:
“Não vou voltar atrás no tempo nem fingir que nada aconteceu. Preciso de me reencontrar antes de pensar em nós outra vez. Quero ser feliz — por mim e pelos nossos filhos.”
Enviei-lhe por email porque sabia que não conseguiria dizer aquilo cara a cara.
Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente: mais forte, mais consciente das suas fragilidades e dos seus limites. Ainda dói — claro que dói — mas já não me sinto culpada por ter amado demais os meus filhos ou por me ter esquecido de mim própria durante tanto tempo.
Pergunto-me muitas vezes: quantas mulheres vivem assim caladas? Quantas se anulam em nome da família até deixarem de saber quem são? E vocês… já sentiram isto alguma vez?