Ele traiu-me e disse que a culpa era minha – porque eu cuidava demasiado dos nossos filhos

— Não posso mais, Mariana! Sinto-me sufocado nesta casa! — gritou Ricardo, batendo com força a porta da cozinha. O som ecoou pela casa, misturando-se ao choro do pequeno Tomás, que acordara assustado no quarto ao lado. Eu estava a meio de preparar o jantar, as mãos ainda sujas de cenoura ralada, quando ouvi aquelas palavras. O meu coração apertou-se como se alguém o tivesse torcido com as duas mãos.

— Sufocado? — repeti, tentando não tremer. — Sufocado porquê, Ricardo? Porque tens uma família? Porque tens filhos que precisam de ti?

Ele passou as mãos pelo cabelo, nervoso, evitando o meu olhar. — Não é isso… É tudo! Tu só vives para eles! Para a casa! Para as rotinas! Já não existe Mariana, só existe a mãe dos meus filhos.

As palavras dele cortaram-me como facas. Tentei responder, mas a voz falhou-me. Lembrei-me de todas as noites em claro com o Tomás e a Leonor, das febres, das birras, das corridas para a escola e para o trabalho. Lembrei-me de como me esqueci de mim própria para ser tudo para eles. E agora, ele dizia-me que isso era um erro.

Naquela noite, depois de adormecer os miúdos, sentei-me sozinha na sala escura. O telemóvel vibrou. Uma mensagem de uma tal “Sofia” apareceu no ecrã de Ricardo. O coração disparou. Não queria ser aquela mulher que espreita o telemóvel do marido, mas naquele momento fui. Li as mensagens: encontros às escondidas, promessas sussurradas, risos cúmplices. Senti-me traída, humilhada e… vazia.

No dia seguinte, enfrentei-o. — Quem é a Sofia?

Ricardo ficou pálido. — Não é nada do que pensas…

— Não me mintas! — gritei. — Depois de tudo o que fiz por esta família…

Ele explodiu: — Tu fizeste tudo por eles! Nunca por mim! Nunca por nós! Achas que é fácil viver com alguém que só fala de fraldas, horários e consultas? Eu precisava de ti, Mariana! E tu desapareceste!

As lágrimas correram-me pela cara. — Eu desapareci porque tive de ser mãe! Porque tu nunca estiveste verdadeiramente presente! Achas que eu não sinto falta de ser mulher? De ser vista?

Ele virou costas e saiu porta fora. Fiquei ali, sozinha, com a dor a crescer dentro do peito.

Os dias seguintes foram um nevoeiro. Tentei manter as rotinas para os miúdos não perceberem nada. Mas Leonor começou a perguntar pelo pai ao jantar. Tomás chorava mais do que o habitual. Senti-me a desmoronar por dentro.

A minha mãe veio ajudar-me. — Mariana, tens de pensar em ti também. Não podes carregar o mundo às costas.

Mas como? Como podia pensar em mim quando tudo à minha volta dependia de mim?

Uma noite, depois de adormecer os miúdos, sentei-me à janela com uma chávena de chá nas mãos. Olhei para o céu escuro e perguntei-me onde tinha ficado a Mariana de antes. Aquela que sonhava viajar, dançar até tarde, rir sem medo do amanhã.

Ricardo voltou uma semana depois para buscar algumas roupas. Olhou para mim com olhos cansados.

— Vou ficar uns tempos em casa da minha irmã. Preciso de espaço.

— E nós? — perguntei.

Ele encolheu os ombros. — Não sei… Preciso de perceber quem sou.

— E eu? Eu também preciso disso! Mas não posso fugir!

Ele não respondeu. Saiu sem olhar para trás.

Os meses passaram devagar. Fui obrigada a aprender a viver sozinha com os meus filhos. Houve dias em que quis desaparecer. Houve noites em que chorei até adormecer. Mas também houve manhãs em que senti um estranho alívio por já não viver naquela tensão constante.

Comecei a sair mais com as crianças. Levei-os ao parque, ao cinema, à praia no inverno só para sentir o vento na cara. Aos poucos, comecei a sentir-me viva outra vez.

Um dia, Leonor perguntou:

— Mãe, tu estás triste?

Sorri-lhe com ternura.

— Às vezes estou, filha. Mas também estou feliz por estar convosco.

Ela abraçou-me com força e senti uma onda de amor a invadir-me.

Ricardo ligava de vez em quando para saber dos miúdos. Nunca perguntava por mim. Soube pela irmã dele que continuava com Sofia.

A dor foi dando lugar à aceitação. Comecei a olhar para mim ao espelho e a ver uma mulher cansada mas forte. Uma mulher capaz de sobreviver à traição e ao abandono.

Voltei a pintar as unhas, a ouvir música alta enquanto cozinhava, a rir com amigas antigas ao telefone. Inscrevi-me num curso online só para mim.

Certa noite, Ricardo apareceu à porta sem avisar. Parecia mais magro, os olhos fundos.

— Mariana… — começou ele, hesitante — Queria pedir desculpa… Por tudo.

Olhei para ele em silêncio.

— Fui cobarde — continuou — Fugi porque não sabia lidar com as minhas próprias frustrações… E culpei-te por coisas que eram minhas.

Senti vontade de chorar mas mantive-me firme.

— Ricardo… Eu também me perdi neste caminho. Mas agora estou a aprender a encontrar-me outra vez.

Ele baixou os olhos.

— Achas que algum dia podemos voltar ao que éramos?

Pensei nos anos juntos, nos sonhos partilhados e nas feridas abertas.

— Não sei… Talvez possamos ser algo novo. Mas nunca mais serei só “a mãe dos teus filhos”. Agora sou Mariana outra vez.

Ele sorriu tristemente e despediu-se dos miúdos antes de sair.

Fiquei ali na sala vazia, sentindo um misto de tristeza e esperança.

Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente daquela que começou esta história. Uma mulher marcada pela dor mas também pela coragem de se reinventar.

Pergunto-me: quantas mulheres se perdem assim sem darem por isso? Quantas conseguem voltar a encontrar-se? E tu… já te perdeste alguma vez?