Durante anos chamámos-lhes amigos, até ao dia em que nos traíram: Uma história da vida lisboeta

— Não podes simplesmente ignorar o que aconteceu, Marta! — gritou a minha mãe, com a voz embargada, enquanto eu, sentada à mesa da cozinha, tentava conter as lágrimas que ameaçavam cair.

O cheiro a café acabado de fazer misturava-se com a tensão no ar. O relógio da parede marcava quase meia-noite, mas ninguém conseguia dormir naquela casa. O meu pai, calado, olhava para o chão, os dedos a tamborilar nervosamente na madeira da mesa. A minha mãe, de pé, de braços cruzados, fitava-me como se esperasse que eu dissesse algo que pudesse desfazer o nó que se tinha criado entre nós e os vizinhos do 3º esquerdo — a família Silva.

Durante anos, os Silva foram mais do que vizinhos. A Dona Rosa era como uma segunda mãe para mim. O Sr. António ajudou o meu pai a montar as estantes da sala, e o Tiago, o filho deles, foi o meu melhor amigo desde que me lembro. Partilhámos tardes de verão na varanda, risos, choros, e até as chaves de casa. Quando a minha avó morreu, foi a Dona Rosa quem me abraçou mais forte. Quando o Tiago partiu o braço, fui eu quem ficou ao lado dele no hospital. Crescemos juntos, como irmãos.

Mas tudo mudou naquela noite de outubro, quando o meu pai perdeu o emprego. A fábrica onde trabalhava fechou de um dia para o outro. O desespero instalou-se em casa. As contas acumulavam-se, e a comida começou a faltar. A minha mãe, orgulhosa, recusava-se a pedir ajuda, mas eu sabia que não tínhamos outra escolha. Foi então que bati à porta dos Silva.

— Marta, querida, entra — disse a Dona Rosa, sorrindo, mas o sorriso não lhe chegava aos olhos.

Expliquei-lhes a situação, a voz a tremer. Pedi apenas um pouco de arroz, talvez um litro de leite. Nada mais. Dona Rosa olhou para o Sr. António, que desviou o olhar. Tiago não disse nada. O silêncio foi ensurdecedor.

— Sabes, Marta, as coisas também não estão fáceis para nós — murmurou o Sr. António, mexendo no relógio de pulso. — O Tiago está desempregado, e a Rosa anda doente…

— Claro, compreendo — respondi, tentando sorrir. Mas por dentro, senti-me a afundar. Saí dali com as mãos vazias e o coração partido.

Quando contei aos meus pais, a minha mãe explodiu. — Depois de tudo o que fizemos por eles! — gritou. O meu pai limitou-se a abanar a cabeça, murmurando que as pessoas só mostram quem são nos momentos difíceis.

Nos dias seguintes, evitámos cruzar-nos no corredor. O Tiago mandou-me uma mensagem: “Desculpa, não era suposto ser assim.” Não respondi. Não sabia o que dizer. Senti-me traída, abandonada por quem mais confiava.

O tempo passou, mas a ferida não sarou. O Natal chegou, e pela primeira vez não trocámos presentes com os Silva. A minha mãe chorou em silêncio na noite da consoada. O meu pai ficou até tarde a olhar para a televisão desligada. Eu fechei-me no quarto, a recordar os natais antigos, quando a Dona Rosa fazia rabanadas para todos e o Tiago e eu trocávamos presentes feitos à mão.

A situação em casa piorou. O meu pai começou a beber. A minha mãe perdeu peso, os olhos fundos de preocupação. Eu arranjei um trabalho num café, mas o dinheiro mal chegava para pagar a renda. Uma noite, ouvi os meus pais a discutir. A minha mãe queria voltar para a terra, para casa dos meus avós, mas o meu pai recusava-se a abandonar Lisboa.

Um dia, ao regressar do trabalho, encontrei o Tiago à porta do prédio. Estava diferente, mais magro, o olhar cansado.

— Marta, precisamos de falar — disse ele, a voz baixa.

— Não há nada para dizer — respondi, tentando passar por ele.

Ele segurou-me pelo braço. — Por favor, ouve-me. Os meus pais… Eles tinham medo. Medo de que, se ajudassem, ficassem sem nada. Não foi por mal. Eu queria ajudar-te, mas não sabia como.

Olhei para ele, sentindo raiva e tristeza misturadas. — Às vezes, Tiago, o medo faz-nos esquecer quem somos. E quem temos ao nosso lado.

Ele baixou a cabeça. — Eu sei. E lamento. Mas não deixes que isto destrua tudo o que fomos.

Afastei-me, sem olhar para trás. Durante semanas, evitei o Tiago e os pais dele. Mas Lisboa é pequena, e os corredores do prédio ainda mais. Um dia, cruzei-me com a Dona Rosa no supermercado. Ela sorriu-me, mas o sorriso era triste, carregado de culpa. Eu sorri de volta, mas o gesto saiu-me forçado.

A vida continuou, dura e lenta. O meu pai acabou por aceitar um trabalho longe, numa fábrica em Setúbal. A minha mãe começou a fazer limpezas em casas de outras pessoas. Eu continuei no café, a servir cafés e a ouvir as conversas dos clientes sobre as suas vidas perfeitas. Às vezes, via o Tiago na rua, mas nunca mais falámos.

Os anos passaram. A dor da traição foi-se tornando menos aguda, mas nunca desapareceu. Aprendi a confiar menos, a esperar menos dos outros. Mas também aprendi a valorizar quem fica ao nosso lado quando tudo desaba.

Hoje, olho para trás e pergunto-me: será que eu teria feito diferente? Será que teria tido coragem de ajudar, mesmo com medo? Ou será que, no fundo, todos somos capazes de trair quem mais amamos quando o desespero bate à porta?

E vocês, o que fariam no meu lugar? Conseguiriam perdoar uma traição destas, ou há feridas que nunca saram?