Doze Anos Depois: O Regresso de Rui e as Feridas que Nunca Fecharam
— Olá, Ana. Posso entrar?
A voz dele ecoou no corredor do prédio, rouca e hesitante, como se cada sílaba pesasse toneladas. Fiquei paralisada à porta, a mão ainda na maçaneta, o coração a bater tão forte que temi que os vizinhos ouvissem. Do outro lado estava Rui — o homem que há doze anos saiu de casa com uma mala na mão e um olhar vazio, deixando-me sozinha com a nossa filha de três anos e um silêncio ensurdecedor.
— O que estás aqui a fazer? — perguntei, tentando controlar o tremor na voz. Não sabia se devia gritar, chorar ou simplesmente fechar-lhe a porta na cara.
Ele baixou os olhos, envergonhado. O cabelo estava mais grisalho, as rugas vincavam-lhe o rosto. Mas era Rui. O mesmo Rui que me prometeu amor eterno no altar da Igreja de São Domingos, o mesmo Rui que me traiu com a colega do escritório e desapareceu da nossa vida sem olhar para trás.
— Preciso falar contigo. Com a Marta também… — murmurou.
A menção ao nome da nossa filha fez-me estremecer. Marta tinha agora quinze anos e aprendera a viver sem pai. Ou melhor, aprendera a não falar dele. Durante anos, evitei mencionar Rui em casa. As perguntas dela eram poucas, mas dolorosas:
— Mãe, porque é que o pai não liga no Natal?
— Mãe, será que ele pensa em mim?
Nunca soube responder. Inventava desculpas, dizia que ele estava longe, ocupado. Mas a verdade era simples: Rui escolheu outra família. Outra mulher. Outra vida.
Agora estava ali, à minha frente, como se pudesse simplesmente voltar atrás no tempo.
— Não sei se é boa ideia — respondi, sentindo as lágrimas ameaçarem cair. — A Marta já não é uma criança. Não sei se ela quer ver-te.
Ele assentiu, resignado.
— Eu mereço isso. Sei que falhei convosco. Mas preciso tentar…
Fechei os olhos por um instante. A raiva misturava-se com uma saudade antiga, quase esquecida. Lembrei-me das noites em que adormecíamos juntos no sofá a ver novelas da RTP1, das férias em Vila Nova de Milfontes quando ainda éramos felizes. Mas também me lembrei das discussões, das mentiras, do vazio que ficou quando ele partiu.
— Dá-me um minuto — pedi.
Fui até ao quarto da Marta. Ela estava deitada na cama, auscultadores nos ouvidos, a ver vídeos no telemóvel.
— Filha… — comecei, sentando-me ao lado dela. — O teu pai está cá fora. Quer falar contigo.
Ela tirou os auscultadores devagar, como se não tivesse ouvido bem.
— O quê? Agora? — Os olhos dela encheram-se de surpresa e desconfiança.
Assenti.
— Não tens de o ver se não quiseres. Mas achei que devias saber.
Marta ficou em silêncio durante alguns segundos. Depois levantou-se devagar e foi até à porta da sala. Eu segui-a, o coração apertado.
Rui estava de pé junto à janela, nervoso. Quando viu Marta, os olhos dele brilharam com lágrimas contidas.
— Olá, filha…
Ela ficou imóvel, braços cruzados.
— Porque é que vieste agora? — perguntou ela, fria.
Rui engoliu em seco.
— Porque fui cobarde durante demasiado tempo. Porque pensei que podia fugir do passado… mas não posso fugir de ti.
O silêncio instalou-se na sala. Senti vontade de abraçar Marta e protegê-la daquela dor antiga que eu própria conhecia tão bem.
— Não sei se quero falar contigo — disse ela finalmente. — Foram muitos anos sem ti.
Rui aproximou-se um passo, mas parou ao ver o olhar dela.
— Eu entendo. Só queria pedir desculpa… E dizer que estou aqui agora, se quiseres conhecer-me outra vez.
Marta olhou para mim como quem procura respostas num mar revolto.
— Mãe…?
Apertei-lhe a mão.
— A decisão é tua, filha.
Ela saiu da sala sem dizer mais nada. Rui ficou ali parado, derrotado.
— Não esperava perdão — murmurou ele para mim. — Só precisava tentar.
Sentei-me no sofá, exausta. Durante anos sonhei com este momento: o regresso de Rui, as explicações que nunca vieram. Agora que estava ali, tudo parecia mais difícil do que alguma vez imaginei.
— Porque voltaste mesmo? — perguntei baixinho.
Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez desde que chegara.
— A Teresa deixou-me há seis meses. Fiquei sozinho… E percebi tudo o que perdi convosco. Sei que é tarde demais para nós dois… Mas queria tentar ser pai da Marta.
A sinceridade dele magoou-me mais do que qualquer mentira antiga. Parte de mim queria gritar-lhe que não podia simplesmente voltar quando lhe apetecia; outra parte queria acreditar que as pessoas mudam.
Durante semanas seguintes, Rui tentou aproximar-se de Marta: enviava mensagens curtas, perguntava pela escola, oferecia boleias para o treino de voleibol. Ela recusava quase sempre. Eu via-a chorar sozinha no quarto depois de cada tentativa dele.
Uma noite ouvi-a soluçar baixinho e entrei no quarto sem bater.
— Filha…
Ela olhou para mim com os olhos vermelhos.
— Porque é que ele foi embora? Porque é que agora quer voltar?
Sentei-me ao lado dela e abracei-a com força.
— Não sei responder a isso… Às vezes as pessoas fazem escolhas erradas e só percebem tarde demais o mal que causaram.
Ela encostou a cabeça ao meu ombro.
— Tenho medo de confiar nele outra vez…
Beijei-lhe a testa.
— Não tens de perdoar ninguém se não quiseres. Mas também não precisas carregar essa dor sozinha para sempre.
No dia seguinte Rui apareceu à porta com um envelope na mão.
— Queria mostrar-vos isto — disse ele nervoso.
Dentro do envelope estavam fotografias antigas: eu e ele no nosso casamento; eu grávida da Marta; os três juntos no parque da cidade; a primeira bicicleta dela; um postal escrito por ele quando estava em Lisboa em trabalho: “Amo-vos mais do que tudo”.
As lágrimas correram-me pelo rosto sem pedir licença.
Marta pegou numa das fotos e ficou a olhar para ela muito tempo.
— Lembras-te disto? — perguntou Rui baixinho.
Ela assentiu devagar.
— Lembro-me desse dia…
Foi um momento pequeno mas importante: pela primeira vez em doze anos vi esperança nos olhos dela quando olhou para o pai.
Os meses passaram devagar. Rui foi paciente: nunca forçou nada; esperou sempre pelo ritmo da Marta; pediu desculpa vezes sem conta; aceitou o silêncio e a distância dela sem reclamar. Aos poucos ela começou a responder às mensagens dele; aceitar boleias; conversar sobre coisas pequenas: o Benfica, os testes de matemática, as amigas novas da escola secundária.
Eu observava tudo com um misto de alívio e medo: medo de ver a filha magoada outra vez; medo de abrir espaço para Rui na nossa vida depois de tanto tempo a aprender a viver sem ele; medo de me perder nos sentimentos antigos que ainda teimavam em aparecer quando ele sorria daquele jeito só dele.
Numa tarde chuvosa de novembro estávamos os três sentados à mesa da cozinha: chá quente nas mãos, bolachas Maria espalhadas pela toalha aos quadrados vermelhos e brancos. Marta contou uma piada qualquer sobre professores e rimos todos juntos pela primeira vez em muitos anos.
Rui olhou para mim com gratidão silenciosa. Senti uma paz estranha dentro do peito — como se finalmente pudesse respirar fundo depois de tanto tempo presa ao passado.
Mas sei que nada será como antes. As feridas não desaparecem só porque queremos muito; as cicatrizes ficam para sempre como lembrete do que perdemos e do que conseguimos reconstruir apesar de tudo.
Agora pergunto-me: será possível perdoar verdadeiramente alguém que nos partiu o coração? Ou será que aprendemos apenas a viver com as ausências e os silêncios? E vocês… já tiveram de escolher entre guardar rancor ou dar uma segunda oportunidade?