Dois anos depois do casamento com um homem divorciado: Será que o nosso amor sobrevive agora que a filha dele vem viver connosco?

— Não é justo! — gritou a Mafalda, batendo com a porta do quarto tão forte que os quadros da sala estremeceram. Fiquei ali, parada no corredor, com o coração aos pulos e as mãos a tremer. O Paulo olhou para mim, exausto, como se me pedisse desculpa só com os olhos. Mas eu sabia que não era a mim que ele devia desculpas. Ou talvez fosse.

Dois anos depois do nosso casamento, nunca pensei que a minha vida se transformasse nisto: um campo de batalha onde cada palavra podia ser uma granada. Quando conheci o Paulo, ele era um homem ferido mas doce, com um sorriso triste e uma filha que só via aos fins de semana. Achei que estava preparada para tudo. Mas ninguém nos prepara para viver com uma adolescente magoada, num T2 minúsculo em Benfica, onde até o silêncio é barulhento.

A Mafalda veio viver connosco porque a mãe dela foi trabalhar para o Luxemburgo. No início, tentei ser compreensiva. Ela estava a perder tudo: a casa dela, os amigos, até o cheiro do quarto. Mas rapidamente percebi que não era só ela que estava a perder. Eu também perdi o meu espaço, as minhas rotinas, até o meu marido. O Paulo tornou-se um mediador de conflitos, sempre a tentar agradar à filha e a mim, mas sem conseguir agradar verdadeiramente a nenhuma das duas.

— Ela precisa de tempo — dizia-me ele, baixinho, depois das discussões.
— E eu? Eu não preciso de nada? — respondia eu, sentindo-me egoísta e ao mesmo tempo invisível.

As noites tornaram-se longas. Ouvia-a chorar baixinho no quarto ao lado e sentia-me uma intrusa na própria casa. Uma noite, fui ter com ela. Bati à porta devagarinho.

— Mafalda? Posso entrar?
Silêncio.
— Só queria saber se precisas de alguma coisa…
— Preciso que me deixem em paz! — respondeu ela, sem sequer abrir a porta.

Voltei para a sala e sentei-me no sofá, abraçada às pernas. O Paulo apareceu pouco depois.
— Ela vai habituar-se — disse ele.
— E se não se habituar? — perguntei eu, mas ele já não tinha resposta.

Os dias passaram entre pequenas guerras: discussões por causa da loiça suja, da música alta, dos trabalhos de casa esquecidos. Uma vez encontrei cigarros escondidos na mochila dela e fiquei dividida entre contar ao Paulo ou guardar segredo. Acabei por não dizer nada. Senti-me cúmplice de algo maior do que eu.

O pior foi quando começaram as mensagens anónimas no meu telemóvel: “Nunca vais ser mãe dela.” “Ela odeia-te.” No início achei que era alguém da escola dela a fazer bullying, mas depois percebi que era ela própria. Mostrei ao Paulo. Ele ficou branco.

— Não pode ser…
— É a letra dela, Paulo. Eu reconheço.
Ele sentou-se à mesa da cozinha e chorou pela primeira vez desde que nos conhecemos.

A partir daí tudo mudou. O Paulo começou a afastar-se de mim. Passava mais tempo com a Mafalda, tentava protegê-la de tudo e de todos — até de mim. Eu sentia-me cada vez mais sozinha naquela casa cheia de vozes e silêncios pesados.

Uma noite, depois de mais uma discussão sobre as notas da Mafalda na escola, perdi a cabeça.
— Não aguento mais! — gritei eu. — Isto não é vida! Não posso ser sempre eu a ceder!
O Paulo olhou para mim como se eu fosse uma estranha.
— Se não aguentas, talvez devesses ir embora — disse ele, num tom frio que nunca lhe tinha ouvido.

Fui dormir ao sofá nessa noite. Chorei baixinho para não acordar ninguém. Senti-me derrotada, como se tivesse falhado em tudo: como mulher, como companheira, como madrasta improvável.

No dia seguinte, recebi uma mensagem da minha mãe: “Filha, tens de pensar em ti também.” Fiquei horas a olhar para aquelas palavras. Pensei em fazer as malas e sair dali sem olhar para trás. Mas depois ouvi a Mafalda a chorar no quarto e alguma coisa dentro de mim partiu-se.

Fui ter com ela outra vez. Desta vez bati à porta e esperei até ela abrir.
— Mafalda… — comecei eu, sem saber bem o que dizer.
Ela olhou para mim com os olhos vermelhos.
— Desculpa — disse ela de repente. — Eu só queria que tudo fosse como antes…
Sentei-me ao lado dela na cama.
— Eu também — confessei. — Mas não podemos voltar atrás. Só podemos tentar fazer melhor daqui para a frente.
Ela encostou-se ao meu ombro e chorou baixinho. Pela primeira vez senti que talvez houvesse esperança.

O Paulo apareceu à porta e ficou ali parado, sem saber se devia entrar ou sair. Fiz-lhe sinal para se sentar connosco. Ficámos os três em silêncio durante muito tempo. Não resolvemos nada naquele momento, mas pela primeira vez em meses senti que éramos uma família — imperfeita, cheia de falhas e mágoas, mas ainda assim uma família.

Agora escrevo estas palavras sentada na varanda minúscula do nosso apartamento, com o cheiro do café acabado de fazer e o som dos carros lá fora. Sei que nada vai ser fácil daqui para a frente. Sei que vamos discutir mais vezes, que vou sentir vontade de fugir muitas outras vezes. Mas também sei que há amor aqui — mesmo quando está escondido atrás das portas fechadas e dos gritos abafados.

Pergunto-me: quantas famílias sobrevivem às tempestades sem se perderem pelo caminho? E será que vale sempre a pena lutar pelo amor quando tudo parece desmoronar?