Dois Anos Depois: Casar com um Divorciado e Enfrentar o Nosso Limite

— Não é justo, Ricardo! — gritei, sentindo a voz embargar-se-me na garganta. — Disseste-me que íamos ter o nosso espaço, a nossa vida. Agora a Inês vem viver connosco e nem sequer me perguntaste se eu estava preparada para isso!

Ricardo olhou-me com aquele ar cansado que já lhe conheço tão bem, os olhos fundos de quem carrega mais do que devia. — Ela é minha filha, Sofia. Não posso deixá-la sozinha em Santarém. Vai começar a universidade em Lisboa, precisa de apoio.

A minha cabeça girava. O apartamento de dois quartos em Benfica já era pequeno para nós os dois. A ideia de partilhar o pouco espaço que tínhamos com uma adolescente que mal conhecia parecia sufocante. Mas o pior era o medo: medo de não ser suficiente, medo de perder Ricardo para o passado dele, medo de nunca ser realmente parte da família dele.

Lembro-me do dia em que conheci a Inês. Tinha 17 anos e um olhar desconfiado. Cumprimentou-me com um “olá” seco, sem me olhar nos olhos. Na altura pensei que era só timidez, mas agora percebo que era mais do que isso: era resistência. Eu era a mulher que ocupava o lugar da mãe dela.

Os primeiros meses de casamento foram uma mistura de paixão e insegurança. Ricardo era atencioso, mas havia sempre uma sombra entre nós — a ex-mulher dele, Teresa, e a filha. As conversas ao telefone, as mensagens trocadas à noite, os jantares de família onde eu era sempre “a nova”. Aguentei tudo calada, convencida de que com o tempo as coisas melhorariam.

Mas agora, com a Inês prestes a chegar, todos os meus medos voltaram à superfície. Passei noites sem dormir, imaginando como seria partilhar a casa com ela. Será que ia respeitar o meu espaço? Será que ia tentar afastar-me do pai? E se Ricardo começasse a dar-lhe razão em tudo?

Na semana em que Inês chegou, o ambiente ficou tenso. Ela trouxe malas demais para o quarto minúsculo e reclamou logo da falta de privacidade. — Não tens uma secretária para eu estudar? — perguntou-me com desdém.

— Podemos arranjar uma — respondi, tentando soar simpática.

— Pois… — murmurou ela, já a mexer no telemóvel.

Ricardo tentava mediar as coisas, mas acabava sempre por tomar o partido da filha. Uma noite, depois de um jantar particularmente silencioso, ouvi-os a falar baixinho na sala.

— Não gosto dela — sussurrou Inês.

— Dá-lhe uma oportunidade — pediu Ricardo. — A Sofia só quer ajudar.

— Não preciso da ajuda dela — respondeu Inês.

Senti-me invisível. No dia seguinte, ao pequeno-almoço, tentei puxar conversa.

— Como correu o teu primeiro dia na faculdade?

— Normal — respondeu ela sem levantar os olhos do prato.

Ricardo olhou para mim com um pedido de paciência no olhar. Mas eu já não tinha mais para dar.

As semanas passaram e as discussões começaram a ser mais frequentes. Inês deixava roupa espalhada pela casa, ocupava a casa de banho durante horas e monopolizava a atenção do pai. Uma noite, depois de mais uma discussão sobre quem ia lavar a loiça, explodi:

— Isto não pode continuar assim! Sinto-me uma estranha na minha própria casa!

Ricardo levantou-se da mesa e saiu para a varanda. Fiquei sozinha com Inês, que me olhou com um misto de desafio e pena.

— Ele nunca vai escolher-te a ti — disse ela baixinho.

Essas palavras ficaram-me gravadas na memória como uma ferida aberta. Comecei a evitar estar em casa. Saía mais cedo para o trabalho, ficava até mais tarde no escritório só para não ter de enfrentar aquele ambiente pesado.

Uma noite, quando cheguei a casa já depois das dez, encontrei Ricardo sentado no sofá às escuras.

— Temos de falar — disse ele.

Sentei-me ao lado dele, sentindo o coração bater descompassado.

— Isto não está a funcionar — começou ele. — Eu amo-te, Sofia. Mas sinto que estou sempre a escolher entre ti e a minha filha. E não quero perder nenhuma das duas.

As lágrimas começaram-me a escorrer pelo rosto antes sequer de conseguir responder.

— Eu tentei… Juro que tentei — soluçava eu. — Mas sinto-me sempre em segundo plano. Não sei se consigo viver assim.

Ricardo abraçou-me, mas senti-o distante. Naquela noite dormimos costas voltadas pela primeira vez desde que casámos.

No fim-de-semana seguinte fui visitar os meus pais em Setúbal. Precisava de espaço para pensar. A minha mãe percebeu logo que algo não estava bem.

— O que se passa, filha?

Desabafei tudo: os ciúmes, as discussões, o medo de perder Ricardo.

— Quando nos apaixonamos por alguém com passado — disse ela — temos de aceitar que esse passado faz parte do presente deles. Mas também tens direito ao teu lugar. Não te anules por ninguém.

Voltei para Lisboa decidida a ter uma conversa séria com Ricardo e Inês. Queria pôr tudo em pratos limpos.

Naquela noite sentei-os à mesa da cozinha e falei com toda a honestidade que consegui reunir:

— Sei que não sou tua mãe, Inês. E não quero ocupar esse lugar. Mas esta também é a minha casa e preciso de sentir que pertenço aqui. Podemos tentar encontrar uma forma de convivermos sem nos magoarmos?

Inês olhou para mim durante uns segundos longos demais antes de responder:

— Eu só queria ter o meu pai para mim outra vez…

Ricardo pegou-lhe na mão e olhou para mim:

— Podemos tentar ser uma família diferente? Não perfeita… só diferente?

Foi um começo tímido, mas foi um começo. Começámos a dividir tarefas domésticas, combinámos noites em que cada uma podia ter tempo sozinha com Ricardo e até saímos juntas para tomar café algumas vezes.

Ainda há dias em que sinto ciúmes ou insegurança. Ainda há momentos em que me pergunto se fiz bem em casar com alguém com tanto passado por resolver. Mas também aprendi que as famílias não são feitas só de sangue ou de histórias perfeitas.

Às vezes dou por mim a pensar: quantas pessoas vivem assim, presas entre o passado e o presente dos outros? Será possível amar alguém sem nos perdermos pelo caminho? Gostava mesmo de saber como é que vocês lidam com isto…