Dois Anos de Silêncio: O Grito Que Não Ouvi da Minha Filha

— Mãe, não consigo mais. — As palavras da Leonor ecoam na minha cabeça como um trovão que nunca se dissipa. Foram as últimas que ouvi da boca dela, há dois anos, antes de fechar a porta do meu apartamento em Almada. Desde então, o silêncio tornou-se o som mais ensurdecedor da minha vida.

Às vezes pergunto-me se foi naquele momento que perdi a minha filha ou se foi muito antes, quando ela ainda era uma menina de tranças e joelhos esfolados, a correr pelo quintal da casa dos meus pais em Setúbal. Sempre fui exigente, sim. Cresci numa família onde o rigor era lei: o meu pai, António, era ferroviário e acreditava que disciplina era sinónimo de amor. A minha mãe, Maria do Céu, era mais branda, mas nunca contestava as regras do meu pai. Talvez por isso, quando tive a Leonor, prometi a mim mesma que ela seria forte, resiliente, capaz de enfrentar o mundo sem medo.

— Não chores por tão pouco, Leonor! — dizia-lhe quando vinha ter comigo com um arranhão ou uma nota menos boa na escola. — A vida não é fácil e ninguém te vai dar nada de mão beijada.

Ela olhava para mim com aqueles olhos grandes e castanhos, cheios de perguntas que nunca fez. Cresceu assim: entre o meu orgulho e a minha vontade de a proteger do mundo.

O tempo passou depressa demais. Um dia dei por mim a ver a Leonor sair de casa para ir para a universidade em Lisboa. Senti um orgulho imenso — e um medo ainda maior. Tinha medo que ela se perdesse, que fizesse más escolhas. Por isso ligava-lhe todos os dias, perguntava-lhe tudo: com quem andava, o que comia, se estudava o suficiente. Ela respondia sempre, mas com o tempo as respostas tornaram-se mais curtas.

Quando conheceu o Miguel — agora seu marido — senti logo um aperto no peito. Não era nada contra ele; era simpático, trabalhador, mas eu achava que ela estava demasiado nova para se envolver tão a sério. Disse-lhe isso várias vezes.

— Mãe, eu amo-o. Quero construir uma vida com ele.
— E os teus estudos? E a tua carreira? Não podes pôr tudo em risco por um rapaz!

Discutimos muito nessa altura. Eu queria protegê-la; ela queria viver. O Miguel acabou por pedir-lhe em casamento e ela aceitou sem me consultar. Senti-me traída. No dia do casamento, forcei um sorriso para as fotografias, mas por dentro estava destroçada.

Depois veio a neta, Matilde. Quando soube que ia ser avó, chorei de alegria e de medo. Tinha tanto receio que a Leonor cometesse os mesmos erros que eu — ou pior, que me culpasse por tudo o que lhe faltou.

A Matilde nasceu prematura e passou as primeiras semanas no hospital. Eu quis ajudar, mas a Leonor recusava-se a aceitar os meus conselhos.

— Mãe, deixa-me fazer as coisas à minha maneira!
— Mas eu já passei por isto! Sei o que é melhor!

As discussões tornaram-se rotina. Eu criticava tudo: como ela alimentava a bebé, como organizava a casa, até como falava com o marido. Achava que estava a ser útil; agora vejo que estava apenas a tentar controlar tudo à minha volta.

O ponto de rutura aconteceu numa tarde chuvosa de novembro. Fui lá a casa sem avisar — queria surpreendê-la com um bolo de laranja como os que fazia quando ela era pequena. Entrei e encontrei-a sentada no chão da sala, a chorar baixinho enquanto embalava a Matilde.

— O que se passa? — perguntei já num tom duro.
— Nada, mãe…
— Nada? Estás assim e dizes-me que não é nada? Olha para esta casa! Está uma confusão! E tu… tens de te recompor! A Matilde precisa de uma mãe forte!

Ela levantou-se devagar e olhou-me nos olhos como nunca tinha feito antes.
— Mãe… não consigo mais.

Foi só isso. Depois pediu-me para sair. Saí sem dizer palavra.

Desde esse dia nunca mais falou comigo. No início ligava-lhe todos os dias; depois todas as semanas; depois só em datas especiais: aniversários, Natal, Páscoa. Nunca respondeu. Vejo fotografias da Matilde no Facebook — já tem dois anos e quase não a conheço. O Miguel também deixou de me atender.

A minha mãe diz-me para ter paciência.
— Dá-lhe tempo, filha. Ela vai voltar.
O meu pai diz que fui demasiado dura.
— Foste igualzinha a mim… e olha como acabámos todos afastados.

Os meus irmãos evitam falar do assunto; os vizinhos perguntam pela Leonor e eu sorrio como se nada fosse.

Às vezes sonho com ela em pequena: vejo-a correr para mim com os braços abertos e acordo com lágrimas nos olhos. Outras vezes imagino-a adulta, sentada à mesa comigo e com a Matilde ao colo — mas nessas imagens há sempre um muro invisível entre nós.

Já tentei escrever-lhe cartas. Guardei-as todas numa gaveta porque tenho medo de parecer patética ou de piorar ainda mais as coisas. Já pensei em ir bater-lhe à porta — mas depois lembro-me do olhar dela naquele dia e fico paralisada pelo medo da rejeição.

Pergunto-me todos os dias onde errei. Será que fui demasiado exigente? Será que confundi amor com controlo? Será que ainda vou a tempo de recuperar o tempo perdido?

A solidão pesa mais ao domingo à tarde, quando o silêncio da casa me envolve como um cobertor frio. Penso em tudo o que podia ter dito — e não disse; em tudo o que devia ter ouvido — e não ouvi.

Se pudesse voltar atrás faria tudo diferente? Não sei… Talvez não soubesse ser outra pessoa senão esta mãe imperfeita, cheia de medos e certezas erradas.

Agora resta-me esperar — e perguntar-me: será possível reconstruir uma ponte depois de tantos anos de silêncio? E vocês, já perderam alguém por orgulho ou excesso de amor?