Dois Anos de Silêncio: A Minha Filha Já Não Fala Comigo
— Inês, por favor, atende o telefone! — gritei para o vazio do meu quarto, o telemóvel a vibrar inutilmente na minha mão. O silêncio respondeu-me, pesado, como tem sido nos últimos dois anos. Dois anos sem ouvir a voz da minha filha, sem sentir o seu abraço, sem saber se ainda sou, de alguma forma, importante na vida dela.
A primeira vez que percebi que algo estava verdadeiramente errado foi numa noite fria de novembro. O vento batia nas janelas do nosso apartamento em Lisboa e eu estava sentada à mesa da cozinha, a olhar para o prato vazio à minha frente. Inês tinha saído cedo para a faculdade e não voltou para jantar. Liguei-lhe três vezes. Mensagens não lidas. O relógio marcava meia-noite quando finalmente ouvi a porta abrir-se.
— Onde estiveste? — perguntei, tentando soar calma, mas a minha voz saiu tensa.
— Mãe, tenho 22 anos. Não preciso de dar satisfações a toda a hora — respondeu ela, largando a mochila no chão.
— Enquanto viveres nesta casa, vais respeitar as regras! — atirei, já sem conseguir controlar o tom.
Ela olhou-me com aqueles olhos castanhos tão parecidos com os meus, mas cheios de uma raiva que eu não reconhecia. — Talvez esteja na altura de deixar de viver aqui então.
Naquela noite, Inês dormiu em casa de uma amiga. No dia seguinte, veio buscar algumas roupas e saiu sem dizer adeus. Achei que era só mais uma discussão entre mãe e filha. Mas os dias passaram. Depois semanas. Depois meses.
No início tentei tudo: mensagens, chamadas, emails. Até fui à faculdade dela, mas disseram-me que já não andava por lá. Vi no Instagram que estava a trabalhar num café em Alfama. Fui lá, sentei-me numa mesa ao fundo e esperei que me visse. Quando finalmente me reconheceu, virou costas e desapareceu para a cozinha.
O meu ex-marido, António, tentava acalmar-me. — Ela precisa de espaço, Ana. Dá-lhe tempo.
Mas como é que uma mãe consegue dar tempo quando sente o coração a ser arrancado do peito todos os dias?
As pessoas à minha volta começaram a afastar-se também. As amigas evitavam falar da Inês. A minha irmã, Teresa, dizia sempre: — Não te martirizes tanto. Os filhos crescem e afastam-se.
Mas eu sabia que não era só isso. Havia algo mais fundo, mais escuro entre nós.
Lembro-me do dia em que tudo começou a mudar. O pai da Inês saiu de casa quando ela tinha 15 anos. Eu fiquei sozinha com ela e com o irmão mais novo, o Miguel. Fiz tudo para manter a casa unida: trabalhava horas extra no hospital, chegava tarde mas tentava sempre estar presente nos jantares de família. Mas estava cansada, irritada, muitas vezes injusta.
Inês era rebelde. Queria sair à noite, experimentar coisas novas, viver como as amigas viviam. Eu tinha medo — medo que se perdesse como eu me perdi na juventude, medo que cometesse erros irreparáveis.
— Não confias em mim! — gritava ela nas discussões.
— Confio demais! É por isso que tenho medo! — respondia eu.
O Miguel tentava sempre apaziguar as coisas. — Mãe, deixa-a respirar um bocadinho.
Mas eu não sabia como. O medo era maior do que eu.
Quando Inês começou a namorar com o João — um rapaz mais velho, tatuado e com um passado complicado — entrei em pânico. Proibi-a de o ver. Ela saiu de casa durante uma semana. Voltou só para buscar livros e roupas.
Foi nessa altura que o silêncio começou a crescer entre nós como uma parede invisível.
Agora olho para trás e vejo todos os momentos em que podia ter feito diferente: podia ter ouvido mais e falado menos; podia ter confiado mais nela e menos nos meus medos; podia ter sido mãe sem ser carcereira.
Há noites em que sonho com ela pequena, deitada ao meu lado na cama depois de um pesadelo. — Mãe, prometes que nunca me vais deixar? — perguntava ela com voz trémula.
— Prometo, meu amor — respondia eu, apertando-a contra o peito.
E agora sou eu quem foi deixada para trás.
O Miguel ainda fala com a irmã de vez em quando. Diz-me sempre: — Ela está bem, mãe. Só precisa de tempo para te perdoar… ou para se perdoar também.
Mas perdoar o quê? O que é que fiz de tão grave? Será que amar demais pode ser um erro tão grande assim?
No Natal passado deixei um presente à porta do apartamento dela: um álbum de fotografias da infância dela e uma carta onde lhe pedia desculpa por tudo o que não soube fazer melhor. Nunca tive resposta.
Os dias passam lentos agora. O hospital já não me ocupa tanto tempo; reformei-me há seis meses. A casa está vazia e silenciosa demais. Às vezes sento-me no sofá e percorro as redes sociais da Inês: vejo-a sorrir com amigos novos, viajar pelo país, celebrar aniversários sem mim.
Sinto orgulho por vê-la feliz… mas também uma dor aguda por não fazer parte dessa felicidade.
Há quem diga que o tempo cura tudo. Mas há dores que só se agravam com o passar dos dias.
Hoje escrevo esta história porque preciso de gritar ao mundo aquilo que não consigo dizer à minha filha: Inês, perdoa-me por te amar tanto ao ponto de te sufocar. Perdoa-me por não saber ser mãe de uma mulher adulta quando só sabia ser mãe de uma menina assustada.
Se algum dia leres isto… lembra-te: ainda sou tua mãe. Ainda te espero todos os dias.
E vocês? Já perderam alguém assim? Como se aprende a viver com este silêncio? Como se pede perdão quando já não há palavras?